Uma vez mais houve conclave no teatro/estúdio Armando Cortês com a crise, a Crise, como ponto único da ordem de trabalhos. Era o “Prós e Contras”, pois claro. Em ambos os lados do palco estavam, como de costume, os que a Fátima Campos Ferreira mais interessava ouvir, os mais destacados, os mais importantes, mas porque no palco não caberiam todos ou porque porventura também haveria os de segunda escolha, digamos assim, também na plateia estavam alguns que a seu tempo seriam chamados a intervir. Nada, enfim, que escapasse ao figurino a que o programa nos habituou. E como se assim quisesse ser em todos os pontos significativos, também desta vez não esteve presente, quer no palco quer fora dele, quem de um modo ou de outro pudesse ser representativo dos verdadeiros protagonistas da crise, dos que verdadeiramente estão, a um tempo, no centro dela e sob os escombros que ela provoca. É claro que os senhores importantes, os empresários, os economistas, os consultores disto e daquilo, os que estão num governo e os que projectam estar no governo seguinte, julgam ser eles os verdadeiros protagonistas, o que aliás não espanta porque ao longo dos tempos se acostumaram a usar protagonismos na lapela. Mas estão enganados (também nisto): os protagonistas desta e de outras crises são os que a sofrem, isto é, sobretudo os que trabalhavam e agora não trabalham porque os decisores, para não serem sequer seriamente tocados pelo cataclismo, se apressaram a empurrá-los para a vala comum do desemprego, isto é, da angústia, do desespero, porventura da miséria. Desses não estava no “Prós e Contras” nenhuma voz, e na verdade nem seria de esperar que estivesse. Bem se sabe que o programa de Fátima Campos Ferreira é uma espécie de clube onde é estritamente reservado o direito de admissão. Curiosamente, um dos intervenientes, e por sinal um dos que habitualmente mais coisas brutalmente ortodoxas em defesa do Mercado debita na unidade de tempo, referiu que os portugueses «estão relativamente confortáveis» no meio da crise. A verdade da sentença depende, já se vê, de que portugueses estava ele a falar. Se se estava a referir aos portugueses ali reunidos, estava cheio de razão: aquela era, verdadeiramente, uma assembleia de confortáveis.
GORDOS E MAGROS
Foi também o mesmo cavalheiro que mais veio tocar a velha tecla da suposta necessidade urgente de “emagrecer o Estado”, fórmula eufemística que corresponde à tarefa, aliás em curso graças à acção de sucessivos governos, de retirar ao Estado as funções que garantem aos cidadãos de uma sociedade democrática a satisfação de direitos e necessidades fundamentais. Esta medida, preconizada precisamente pelos que são mais gordos, mas não de uma gordura que tenha a ver com o perímetro dos seus ventres, está directamente relacionada com a sempre por eles reivindicada diminuição dos impostos, em princípio pagos pelos que mais têm em consequência da proporcionalidade fiscal que permite a função redistributiva do Estado em favor dos que mais precisam sob a forma de serviços. É a velha ética do “governe-se cada qual como possa”, regra verdadeiramente infame que devolve ao clima de selva as sociedades supostamente civilizadas. E foi sintomático que de entre tantas personalidades sábias que o “Prós e Contras” convocara nem uma só se tenha levantado para lembrar essa verdade simples e afinal óbvia, tanto mais oportuna na circunstância quanto é certo que em situação de crise mais compete ao Estado transferir, por diversas formas da redistribuição que é o seu dever, meios e serviços que permitam aos mais vulneráveis a sobrevivência digna. Em verdade, renovar o apelo ao “emagrecimento” do Estado em tempo de crise bem pode ser entendido como incitamento a que se intensifique o esmagamento dos dominados e explorados pelas classes “gordas” que precisamente pela avidez incontrolada desencadearam a crise. É, no mínimo, uma feia acção. É, no máximo, um incitamento a que o crime prossiga e se intensifique. Mas os servidores do Mercado, pseudónimo da instalada forma de exploração das maiorias pelas minorias engordadas por um tipo de dieta que tem algum parentesco com a antropofagia, parecem não se importar com isso. Dir-se-ia que não vêem o que é óbvio aos olhos das vítimas. Talvez porque a gordura, ou apenas a devoção por ela, subindo-lhe às retinas, lhes impede a visão.
http://infoalternativa.org/spip.php?article676
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