quinta-feira, março 05, 2009

A política do campo de concentração

Só abusando da linguagem se pode conceber a incursão israelita na Faixa de Gaza como parte de uma guerra. O conceito de guerra supõe o confronto entre dois corpos armados, regulares ou irregulares, estatais ou não estatais. Neste caso, a desproporção de forças é tão evidente que, em rigor, não se pode falar de verdadeiros combates. Nem sequer é aplicável o conceito de “guerra assimétrica”, criado pelos estrategas militares imperiais para dar conta do conflito entre estados e actores não estatais.
Quando a relação de mortos de parte a parte é de um para 100 e a de feridos a supera folgadamente, para não falar dos danos materiais, que se encontram na sua totalidade de um só lado, parece evidente que se deve acudir a outras ideias para dar conta do processo em curso. Pode falar-se de política de extermínio ou de terrorismo de Estado, mas a transcendência do que sucede impõe ir-se mais além. O filósofo italiano Giorgio Agamben sustenta nos seus livros O que resta de Auschwitz e O poder soberano e a vida nua que existe um espaço onde o estado de excepção é a regra e onde «a situação extrema se converte no próprio paradigma do quotidiano». Esse lugar é o campo de concentração.
Efectivamente, o campo de concentração é aquele espaço onde aparece a “vida nua”: a vida despojada de qualquer direito, de modo que a inexistência de estatuto jurídico – filha directa do estado de excepção tornado regra – permite que ao ser humano que tenha sido excluído e enclausurado no campo «qualquer um o possa matar sem cometer homicídio». Para Agamben, o campo de concentração é o acontecimento fundamental da modernidade, porque é «o paradigma oculto do espaço político».
A radicalidade do seu pensamento leva-o a assumir que a política actual se transformou no espaço da “vida nua”, isto é, num campo de concentração onde se pratica o domínio total. «A essência do campo de concentração – assegura – consiste na materialização do estado de excepção e na conseguinte criação de um espaço no qual a vida nua e a norma entram num limiar de indistinção». Sempre que as elites do planeta precisam desse domínio total para manter a rédea sobre os de baixo, porque abandonaram os estados de bem-estar com os quais procuraram integrar as “classes perigosas”, o estado de excepção converte-se no modo de governo dominante.
Em suma, o campo de concentração como paradigma da dominação actual. A população de Gaza vive, de facto, num gigantesco campo no qual não pode exercer os seus direitos, nem sequer o elementar direito de eleger os seus governantes através do voto. Deve recordar-se que a etapa actual do conflito começou quando a população votou maioritariamente pelo Hamas, algo que nem Israel, nem os Estado Unidos, nem a União Europeia estão dispostos a tolerar.
Mas Gaza não é, na verdade, o único campo de concentração existente no mundo no sentido que lhe dá Agamben. A sua existência ilumina um modo de dominação que vai ganhando terreno em todo o mundo. Quantos espaços existem onde é possível matar o outro sem cometer homicídio? Na América Latina é a situação quotidiana de boa parte dos povos originários e de milhões de habitantes das periferias pobres das grandes cidades. Que são as favelas brasileiras e os bairros de Porto Príncipe senão enormes campos de concentração a céu aberto, onde o Estado pode «não já fazer morrer nem fazer viver, mas fazer sobreviver»? Com a desculpa do narcotráfico e da delinquência, milhares de latino-americanos pobres são mortos todos os anos com total impunidade.
Ao povo mapuche continua a ser-lhe aplicada a lei antiterrorista de Pinochet para resolver conflitos sociais e as comunidades estão militarizadas. Patricia Troncoso realizou uma greve de fome de mais de 100 dias, em finais de 2007, só para ter a possibilidade de as suas exigências serem ouvidas. Os cortadores de cana afro-colombianos tiveram que fazer dois meses de greve para conseguir que a patronal aceitasse reunir-se com eles. Os ricos do açúcar nunca se dignaram tratá-los como seres humanos.
Mas há algo mais. Desde o momento em que, segundo Agamben, o campo de concentração se converteu no paradigma biopolítico de Ocidente e que isso impede qualquer «retorno possível à política clássica», surgem novas perguntas. Como fazer política a partir e no campo de concentração? Não o sabemos, porque estamos apenas a começar a compreender estas novas realidades. Sabemos, sim, que fazer política a partir das instituições é um modo de consolidar o campo de concentração, já que as suas regras e métodos estão feitos à medida dos guardiães que podem «matar sem cometer homicídio».
A fuga não parece possível porque não existe um exterior, mas um arquipélago de campos destinados a albergar os de baixo. A tendência dominante nas democracias ocidentais, diz Agamben, consiste em que «a declaração do estado de excepção está a ser progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma de segurança como técnica normal de governo». Desse modo, instaura-se uma espécie de totalitarismo, através de «uma guerra civil legal, que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos que por qualquer razão resultam não integráveis no sistema político».
Reinventar a luta pela emancipação nestas condições e nesses espaços supõe fazer política por fora das instituições. Para fazê-lo, não temos uma teoria já pronta para ser aplicada, entre outras coisas porque as novas formas de dominação estão a ser ensaiadas gradualmente. Só podemos contar com a experiência dos nossos povos que procuram trasbordar o estado de excepção permanente com iniciativas inovadoras. A minga indígena na Colômbia, a outra campanha zapatista, a resistência mapuche e dos pobres urbanos, são referências e podem ser inspiração.
http://infoalternativa.org/spip.php?article643

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