terça-feira, março 24, 2009

Reflexões sobre a intervenção do Estado na actual crise do capitalismo

A passagem de mais um aniversário do 11 de Março e do 25 de Abril deve constituir um factor de reflexão sobre o papel do Estado na configuração das sociedades e na estruturação do poder, sobretudo, se se pensar que a actual crise do capitalismo está a trazer duas consequências, que se conjugam. À direita, a aceitação aberta de uma profunda intervenção do Estado em apoio dos capitais privados, na garantia da sua viabilização e rendabilidade; e, em alguma esquerda, uma renovada esperança de que essa intervenção se possa fazer a favor dos trabalhadores e da população em geral.
Quando se evidencia uma clara convergência entre a direita e essa esquerda, estamos mais inclinados a considerar que esta última se engana quanto ao carácter progressista da intervenção do Estado, do que a pensar que os capitalistas e os seus agentes não curam devidamente da sua sobrevivência. Em suma, vemos claramente que o aplauso pela intervenção do Estado é a condição de sobrevivência material e ideológica de ambas; quer do capitalismo real, no formato neoliberal, quer do projecto reformista, social-democrata.
O Estado – nadador-salvador em mar encapelado
1. As notícias vão-se sucedendo e revelam claramente o papel do Estado no apoio ao capital. Desde que se desencadeou a crise financeira actual, com o subprime americano, os porta-vozes do chamado “mercado” desdobram-se em afirmações e propostas para todos os gostos mas, com uma postura comum: encobrindo com sorrisos e poses serenas o pânico e a incapacidade para equilibrar o barco.
Como sabemos, há já bastantes anos que o “mercado” vem vivendo mais da especulação que valoriza activos rapidamente e com menos riscos do que imaginar negócios, efectuar estudos financeiros, prospecções de mercado, arriscar numa rendabilidade a longo prazo e outras coisas chatas que, para quem tem dinheiro a rodos, falta a paciência. O risco é apenas um tema de propaganda para o exterior pois, de facto, os capitalistas detestam-no e fogem dele, como o diabo da cruz, como se costuma dizer.
O endeusamento do funcionamento do mercado tornou obrigatório aceitar como tautológica a maior competência da gestão privada comparativamente à pública; que os serviços de carácter colectivo podem ser melhor servidos por empresas privadas (sobretudo se financiadas com fundos públicos, em paralelo com aumentos de preços e estratificação dos utilizadores); e até inventaram a palavra modernaça do “empreendorismo” cuja ausência num discurso de mandarim situa o autor no tempo da pedra lascada.
2. A capacidade de previsão das instituições mais sagradas do capitalismo é de uma ineficácia hilariante. Há um ano, o BCE, subia as taxas de juro para conter a inflação e menosprezava a recessão e o contágio do subprime americano, esquecendo que o sistema financeiro é um sistema mundial, de total promiscuidade. A Comissão Europeia continuava com a sua fixação no tratado de Lisboa, na forma de vigarizar os irlandeses, no deficit e no cumprimento do PEC que agora adiou, para já, até 2010. Essa ineficácia mistificadora deve merecer de todos uma leitura desconfiada e divertida dos oráculos, emitidos com ar sério, pompa e circunstância, pelos seus porta-vozes.
Há um ano, todos os mandarins disseram que o “subprime” era passageiro e localizado, com poucos impactos no resto do mundo, nomeadamente na Eurolândia, para além de algumas instituições mais expostas. Com a recessão implantada, o coçar de cabeça dos mesmos mandarins, sugere que a Eurolândia se terá transformado em … Eurolêndia.
3. Discretamente, os governos ocidentais, com os EUA à cabeça, vão tomando medidas “socialistas”, “colectivistas” que noutras latitudes são consideradas como limitadoras da livre iniciativa, promovidas por entes sociais hediondos, a soldo do Chavez, do Irão ou dos novos czares russos.
Primeiro, os liberais governos ocidentais injectaram liquidez nos mercados para aguentarem os bancos à beira da falência e evitar que a onda se propagasse. Não por acaso, alguns distintos e impolutos banqueiros, não resistiram em acentuar as suas dificuldades para beneficiar mais largamente do dinheiro dos bancos centrais. Como se sabe, capital e vigarice formam um sólido casamento e os casos Maddof, BPN, BPP ou os encobrimentos das “poupanças” de Pinochet, pelo discreto BES, dão razão a Balzac quando dizia: “por detrás de uma grande fortuna está um grande crime”.
Mas as coisas não ficaram por aí. Foram precisas intervenções governamentais directas, coisa horrorosa em termos da teologia neoliberal, entretanto esquecida ou agilizada na sua formulação. Surgiram as nacionalizações! Os mandarins da Eurolândia reuniram-se e decretaram a nacionalização de instituições financeiras, sempre que necessário, para estabilizar o “mercado”, na peugada dos seus mentores americanos.
Como é óbvio, os governos neoliberais utilizam a nacionalização como instrumento capitalista de recurso para sanar os problemas do capitalismo, agindo através do Estado, o tal capitalista colectivo que bem se conhece. Porém, essas nacionalizações só contemplam uma intervenção parcial, pontual e indirecta no sistema financeiro. Pretendem apenas aguentar os bancos para permitirem o financiamento da economia sem acréscimos exagerados nas taxas de juro. Mas…
4. Depois do sistema financeiro a outra prioridade é o desemprego, não por comiseração com a sorte dos milhões de trabalhadores atingidos mas, para evitar agitação social. O despedimento em massa está em curso e os governos até já começaram a obter alguma contenção da parte de alguns capitalistas mais cautelosos quanto à salvaguarda dos seus interesses de longo prazo. Mas, no caso de pequenas e médias empresas, mesmo que haja essa visão, os recursos detidos não permitem suportar o nível do emprego, quando as encomendas escasseiam e a banca se torna mais retraida no fornecimento de crédito.
Esses novos desempregados vêm juntar-se à grande bolsa de desemprego crónico gerada antes da actual crise, elevando os custos sociais e psicológicos, o estado de revolta dos trabalhadores, não sendo garantido que os sindicatos, de direita ou dominados pela esquerda social-democrata, consigam manter a moderação dos protestos, que lhes está conferida como missão principal; como não conseguiram na Grécia, recentemente, por exemplo.
Para conter o descontentamento e a revolta latente, os governos, como o do sacripanta Sócrates (para mais em vésperas de eleições), avançam com pagamentos reforçados aos desempregados, com o alívio aos que têm prestações da casa para pagar ou filhos a estudar, apoios acrescidos aos pensionistas na compra de medicamentos, milhões para os indigentes e sem-abrigo, linhas de crédito para empresas, redução das contribuições para a segurança social para conter algum potencial desemprego. É o que se chama o bodo aos pobres que se segue ao banquete dos ricos.
5. Nada disto altera, na essência a situação; os governos limitam-se a ministrar meros anti-piréticos enquanto esperam que a doença passe. Pretendem que acreditemos que a salvação virá com a reanimação da exportação ou gastos faraónicos com projectos emblemáticos cuja oportunidade, ou viabilidade, são muito discutíveis. Enquanto essa salvação não vier, é preciso manter a multidão mansa e os pobres, manietados com migalhas, custe o que custar; há que aguentar e orar para que o mercado, qual santo milagreiro, se decida a realizar o prodígio de criar um capitalismo suficientemente pujante para continuar a engordar os ricos e contentar os que trabalham, com a sua mansa e distraída magreza.
O programa que se segue
6. Esta incapacidade do poder político, a todos os níveis, vem sendo paga com o endividamento público, com a mobilização de dinheiro dos impostos para a ajuda às empresas e financiamento dos apoios sociais. O governo acaba mesmo de anunciar uma quebra das receitas fiscas na ordem dos 9,4 M euros por dia e que em finais de Fevereiro o deficit era 12 vezes superior ao verificado um ano antes. Neste contexto, a palavra deficit vai voltar em força ao palavreado dos mandarins e aos noticiários.
7. Como se vê, perante a crise estarão em breve criadas as condições para a retoma da agenda neoliberal da redução do deficit e da dívida pública e, portanto para a abertura de uma renovada escalada das medidas anti-sociais, a favor precariezação do trabalho, da redução dos seus custos, da mercantilização dos serviços públicos, da mais estreita lógica contabilistíca na gestão da sociedade. Subirá de novo, o tom da ladainha que os mandarins vêm entoando, momentaneamente, em privado: a moderação salarial para alimentar a competitividade externa e evitar o retorno da crise, a flexisegurança ou um sucedâneo que inventem, os incomportáveis subsídios de desemprego, as pensões que tornam os sistemas de segurança social em perigo, os trabalhadores do Estado excedentários e madraços… Uma ladainha de que ninguém ainda se esqueceu.
O capitalismo tentando despejar as suas deficiências sobre a multidão, aumenta o deficit para nos salvar da recessão; ou, abre a porta à recessão para colmatar o deficit, comprimindo o poder de compra. Dispensamos tanto altruismo. Este ciclo de dificuldades para a espécie humana e para o planeta faz parte do ciclo e, só a eliminação do capitalismo pode terminar com esses sacrifícios constantes, embora com causas variáveis.
O que revelam as projecções demográficas do INE para 2060
8. Estas dificuldades causadas pela manutenção do capitalismo, mormente na sua forma actual são evidenciadas, implicitamente, nas recentes projecções do INE para a população residente em 2060. Essas projecções consideram apenas variáveis demográficas – natalidade, mortalidade e migrações – tendo em conta a evolução recente e, excluindo “factores não demográficos (tais como factores políticos, económicos…)”.
Essa exclusão não nos parece descabida pois, num horizonte de 50 anos, considerar, quantificando, tais varíáveis seria um exercício com resultados aleatórios: porém, a extrapolação das tendências actuais é suficientemente reveladora do desastre que está em curso para os residentes na “ocidental praia lusitana”.
A partir da estimativa de 10,62 M de residentes no início de 2008, o INE formulou as seguintes projecções:
• Cenário elevado – 11,99 M
• Cenário central – 10,36 M
• Cenário baixo – 8,91 M
• Cenário sem migrações – 8,11 M
9. A consideração de um só cenário em que a população cresce, em relação à sua dimensão actual, deve-se porventura, a uma opção técnica formal, a efectivação de um género de “leão lusitano” já que o tigre celta entrou em coma; um cenário resultante de demasiadas variáveis a evoluir favoravelmente no futuro. Sucede, que um crescimento populacional resulta sempre de níveis de confiança face ao futuro, associados a condições favoráveis de vida por parte dos residentes e/ou da atração que essas condições de trabalho e de vida exercem sobre gente com proveniência no exterior.
10. Para os cenários mais baixos podem contribuir, de facto, vários factores de ordem política e económica, hoje bem presentes no terreno. A continuidade da globalização financeira; a contínua pressão para a degradação das condições de vida dos trabalhadores e pensionistas, bem como dos jovens, potenciais fornecedores de descendência e dos idosos com uma longevidade a decair a médio prazo; a pouca capacidade, no contexto da referida globalização, para a atração de investimento promotor de bons salários; a presença de um modelo económico cuja aceitação está implícita na actuação da burguesia portuguesa, pouco interessada num sistema de ensino adequado; a redução ou extinção dos fundos comunitários, etc…
Divisões entre trabalhadores: temporários e menos temporários
11. Veio a instituir-se no quadro da recessão, da ameaça do desemprego, das insuficiências da luta dos trabalhadores, uma lógica assustadora e perversa. Quando uma empresa anuncia dificuldades inclui dispensas de pessoal; e para aliviar a cor negra da mensagem informa, sorridente e benévola, que os dispensados são “apenas” trabalhadores temporários. Na realidade, essa opção faz-se porque é mais barata para os capitalistas, uma vez que não confere direito a indemnizações.
12. Essa pretensa benevolência é dirigida inteirinha aos trabalhadores com vínculo dito permanente e tem subjacente três aspectos. Um, é que a condição de temporário não é em nada marginal pois, por exemplo, em Portugal, abrange 2 M trabalhadores; depois, porque trabalhador temporário ou precário é gente como qualquer outra, que precisa de comer, vestir, ter família, viver a tempo inteiro; finalmente porque, os que se julgam mais seguros por não serem precários, ao aceitar essa hierarquia definida pelo capital, ou são parvos julgando que escapam por maior consideração do patrão, ou encolhem-se, procurando passar despercebidos, para não serem incluidos na onda de dispensas.
Na PSA de Mangualde dos 1200 trabalhadores existentes há pouco tempo, 500 (temporários) foram despedidos o que aliviou os sobrantes; na lógica da miséria, do salve-se quem puder, roer um pão duro é riqueza perante quem não tem nada. O facto de o capital (com o entusiático apoio do Estado) saber distinguir e utilizar as diferenças entre trabalhadores com vínculo mais permanente e outros com menor permanência não significa que, os trabalhadores, no seu conjunto, se diferenciem e assumam a distinção criada pelo capital, para exclusiva conveniência deste último.
23/3/2009
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