segunda-feira, março 23, 2009

A robotização da educação

O escândalo pedagógico do “Magalhães”como corruptor do ensino infantil
Na época actual, o mundo da pedagogia continua mais do que nunca em busca de soluções adaptadas aos tempos. Após a onda de cientifismo que marcou o Século XIX, sobreveio uma educação dedicada ao hediondo culto da raça, algo que entre nós, durante o período totalitário fascista, encontrou expressão na famigerada “Mocidade Portuguesa” decalcada da Juventude Hitleriana da Alemanha nazi. Agora, apesar dos vastos conflitos puramente humanos que afligem a classe docente, tenta-se uma solução electrónica-totalitária: a distribuição em massa de 500.000 minicomputadores “Magalhães” para todo o ensino básico. O projecto é anunciado como uma “revolução para a educação em Portugal” e algo “sem igual no mundo”, sendo que a máquina é pomposamente apresentada como autêntica janela para o futuro e para a vida das novas gerações.
“Magalhães” é na verdade um nome fantasioso para o minicomputador “Classmate” modificado, da mega-empresa americana Intel, sendo que todo o projecto é puro plagiato da missão visionária da OLPC, uma fundação americana que pretende mudar a face da humanidade colocando um minicomputador nas mãos de cada criança do mundo. Após desligar-se da OLPC, a Intel dedicou-se à conquista de um novo mercado global potencial de proporções astronómicas: mais de um bilhão de crianças. Para isso, passou a realizar negociatas de alto nível com governos de países subdesenvolvidos, para a montagem regional da máquina sob diversos nomes e versões. Depois da Irlanda, onde a Intel desfrutou há anos de condições preferenciais para instalar a sua segunda maior fábrica de chips, Portugal foi agora estrategicamente escolhido como país praticamente terceiro-mundista, mas integrado na Europa, para assegurar a montagem, em condições rentáveis, de um minicomputador destinado à exportação em massa.
Assim, o projecto supostamente “educativo” do Magalhães em Portugal é mais exactamente uma super-manobra demonstrativa de marketing para um big business internacional. Curiosamente, esse golpe comercial vem acompanhado de factores imponderáveis: na sequência da crise económica, a Intel está assolada por uma crise global que já provocou no fim do ano passado uma queda de 90% nas suas vendas, estando prevista a eliminação de milhares de postos de trabalho e o encerramento de fábricas na Malásia, Filipinas e EUA. Enquanto isso, a Índia, um país com enormes capacidades independentes, optou por dar as costas aos potentados ocidentais e produzirá em breve em massa o seu próprio minicomputador “Sakshat” a um preço irrisório.
Entre nós o projecto suscita ainda questões de outra índole: Porque obrigar professores a realizar tarefas administrativas estranhas à profissão? O que é que um colossal projecto tecnológico-comercial tem a ver com a nossa atardada educação infantil? Não haverá limites éticos para funcionários públicos que passam a agir como virtuais promotores de vendas para a indústria? Que autoridade humanística e pedagógica tem uma empresa industrial magnata para vir instruir pais e professores quanto ao novo ensino robotizado que pretende implantar entre a infância portuguesa? Serão de admitir como legítimas as invasões da esfera familiar e infantil pela publicidade magalhânica, que já apresentou às ingénuas mentes infantis propostas como “Ganha um iPhone 3G” ou “Ganha um Nintendo DS Lite”? E surge até uma pergunta computacional: será de admitir escravizar as futuras gerações cibernéticas portuguesas, praticamente desde o berço, ao potentado bilionário da Microsoft?
No contexto da autêntica febre que se apossou do mundo computacional, conforme foi descoberto esse vastíssimo mercado infantil praticamente intocado, muitas mais questões delicadas poderiam ser formuladas. Mas o aspecto fundamental é que o lançamento do Magalhães entre nós constitui uma escandalosa experiência sem qualificação pedagógica, sendo que numerosas realidades sobre os efeitos gravíssimos para a formação das personalidades das crianças continuam desconhecidas (ou ocultadas) dos pais, professores e grande público. Entretanto, o tema já foi estudado durante décadas e em profundidade em inúmeras universidades e comunidades educativas em todo o mundo, revelando resultados assombrosos.
Em Nova Iorque, conforme foi descoberto que muitos alunos estavam a usar os seus minicomputadores para enviarem para os seus camaradas de classe soluções para exames, descarregarem filmes pornográficos, ou até interferirem perturbadoramente no comércio local, foram apertadas as medidas de proibições internéticas. Mas rapidamente as crianças conseguiram contornar as proibições, e ainda publicaram na internet a técnica para outras fazerem o mesmo. Além disso, em dias de provas a rede de internet sofria colapsos por causa dos milhares de alunos que tinham os olhos cravados em seus mini-ecrãs. Assim, a exemplo de muitas outras escolas, as autoridades decidiram recolher as máquinas, devido a demonstrarem ser uma decepção educacional.
Mark Lawson, presidente de uma junta de educação, disse que após setes anos não havia qualquer evidência de um impacto positivo sobre o rendimento escolar, sendo que os computadores tinham provocado sobretudo uma dispersão para o processo de aprendizagem. O abandono dos computadores durante trabalhos escolares e o crescente uso abusivo para fins particulares, mais a insuficiente preparação dos professores e os enormes encargos financeiros para lidar com milhares de aparelhos, forçaram por fim os próprios professores a boicotar o seu uso. Também um estudo do Departamento Nacional de Educação dos EUA demonstrou que não havia diferença no sucesso académico entre estudantes que anteriormente usaram, ou não, programas computerizados para a aprendizagem das disciplinas mais críticas: a matemática e a leitura.
Segundo a Dra. McGregor, da University College London, as actividades lúdicas não digitais são capazes de promover o quociente de inteligência (IQ) inclusive em crianças que sofrem de malnutrição e sub-estimulação, como é o caso de milhões de crianças no terceiro mundo. Conforme a pesquisa concluíu, uma simples intervenção dos governos ao mais baixo nível, e a custos mínimos em comparação com tecnologias high-tech, poderia ter uma influência decisiva para mudar as atitudes e encorajar actividades, com imediatos resultados positivos para o rendimento escolar.
Uma pesquisa realizada entre quase 1 milhão de alunos pelos Drs. Clotfeiler, Ladd e Vigdor, da Harvard University, revelou que os melhores resultados em matemática e leitura foram alcançados por crianças que não tinham acesso a computadores em casa. Entre alunos com computadores, o acesso à internet não revelou quaisquer benefícios adicionais. Além disso, os resultados indicaram que o acesso livre a computadores em casa resultaria contra-produtivo para os esforços de reduzir as disparidades raciais, sociais e económicas entre os alunos.
Uwe Buermann, colaborador científico do Instituto Ipsum em Stuttgart e docente de Ciências Computacionais em Kiel, sublinhou que os meios electrónicos presentes na vida de uma grande parte da população infantil são cada vez mais ingenuamente considerados pelos pais como brinquedos, tornando-se assim algo que as crianças podem usar a bel-prazer. Conforme elas mostram depois uma aparente habilidade superior à dos adultos para lidar com as aparelhagens, muitos pais e educadores ficam confortados e deixam de interessar-se pelos seus efeitos negativos, imaginando que são coisas inofensivas e infantis. Entretanto, inúmeros estudos rigorosos já atestaram que o convívio prematuro de crianças na fase pré-pubertária com computadores e tecnologias da comunicação impede de maneira notável o desenvolvimento de muitas capacidades e habilidades, sendo precisamente essas crianças que posteriormente sofrerão de uma limitação nas suas chances pessoais e profissionais, ficando dependentes para o resto da vida.
Nas escolas, cada vez mais crianças mostram debilidades do tipo Distúrbio de Hiperactividade e Défice de Atenção (DHDA). A neurobiologia já atestou que em numerosos casos trata-se de danos psicológicos e orgânicos derivados do consumo de meios electrónicos na primeira fase da infância. A frase “Os computadores ensinam as crianças a lidar com computadores” é muito popular entre os apóstolos pró-digitais, mas imaginar que isto já constitui uma preparação para a vida constitui uma ilusão bastante elementar. O que as crianças em idade pré-pubertária realmente aprendem com os computadores é a mera manipulação dos mesmos, o que não deve ser confundido com uma competência medial. Uma verdadeira competência medial exige suficiente capacidade de auto-avaliação para o uso individual de qualquer aparelhagem, mais uma criatividade bem desenvolvida, e ainda um saudável discernimento crítico acerca dos conteúdos – coisas que as crianças só alcançam mais tarde.
Na Universidade de Munique, um estudo sobre o meio-ambiente computacional familiar e escolar, realizado pelos Drs. Fuchs e Woessmann com o patrocínio da Volkswagen, concluíu que a mera presença de um computador em casa está negativamente relacionada com o rendimento escolar. A existência de computadores na escola demonstrou uma relação insignificante com o desempenho geral dos alunos, e a disponibilidade da internet na escola mostrou inicialmente algum efeito, mas o mesmo degradava-se rapidamente conforme aumentava o número de visitas internéticas por semana. O estudo veio confirmar anteriores pesquisas internacionais que já haviam determinado resultados decepcionantes para os computadores, em termos de rendimento educacional. Os autores acabaram por concluir que, onde quer que os computadores sejam aplicados para substituir outros tipos de instrução, quem sai prejudicado é o aluno.
Entre muitos pais e educadores, espalhou-se a crença de que deixar crianças em frente de um aparelho de televisão, vídeo, etc. contribuirá pelo menos para torná-las mais aptas para lidar com computadores e outros aparelhos, quando mais tarde entrarem para a escola. Os Drs. Zimmerman e Christakis, da University of Washington, atestaram pelo contrário que as populares séries de vídeos infantis estão a fazer mais mal do que bem, especialmente para crianças com dificuldades de desenvolvimento da linguagem. As crianças sofrem um efeito exactamente inverso, deixando de aprender novos vocábulos. Esse resultado negativo, mesmo quando os programas vêm apresentados como educativos, foi verificado também na Faculdade de Medicina da University of New Mexico. A interacção com o mundo real revelou-se como fundamental, sendo que as habilidades linguísticas podiam ser melhoradas até com o simples expediente das crianças ouvirem histórias lidas por adultos. Os pesquisadores emitiram uma condenação categórica: a exposição prematura de crianças a programas audiovisuais só pode produzir o aparecimento de uma geração de crianças hiper-estimuladas e posteriormente deficitárias em termos de concentração.
Um estudo clínico sobre saúde familiar, realizado na Academia Americana de Pediatria, apontou para o facto que os jogos e brincadeiras reais, não digitais, desempenham um papel essencial para a educação, contribuindo para o bem-estar cognitivo, físico, social e emocional, tanto das crianças como dos futuros jovens. Além disso, essas actividades oferecem uma oportunidade ideal para pais e filhos envolverem-se em um verdadeiro convívio humano. Infelizmente, essas actuações pedagógicas salutares vêm sendo abandonadas, devido a uma série de factores como vidas mergulhadas em stress, desintegração das famílias, e uma crescente tendência para a mera acumulação de conhecimentos e dados nas escolas. Muitos pedagogos passaram a menosprezar como factor supérfluo as actividades dos tempos livres e o seu papel essencial para a aquisição de uma série de habilidades permanentes, que são na realidade impossíveis de obter de qualquer outro modo.
Na Universidade Tufts de Massachusetts, o Dr. Elkind estudou durante muitos anos o desenvolvimento de crianças, verificando que a habilidade auto-lúdica está simplesmente a desaparecer, sob o efeito conjugado de meios electrónicos e actividades sedentárias, e ainda uma crescente pressão dos educadores para que crianças do nível básico mostrem cada vez mais rapidamente resultados de cariz académico. Para milhões de crianças, a infância passou a designar um período da vida confinado a quatro paredes. Até jardins de infância estão a ser cada vez mais transformados em verdadeiras escolinhas academificadas, onde as crianças são prematuramente tratadas como mini-adultos, sendo até submetidas a testes elementares e recebendo tarefas para casa.
Conforme o Dr. Elkind salientou, durante as últimas duas décadas as crianças perderam em média 12 horas de tempos livres por semana. Ao mesmo tempo, o período dedicado a desportos duplicou e o número de minutos dedicados a actividades passivas cresceu de 30 minutos para mais do que 3 horas por semana – isto sem contar com os intervalos para contemplar passivamente um aparelho de televisão. “Os efeitos sobre a posterior vida escolar e académica são desastrosos. Ao lidar com ciências e matemática, por exemplo, os jovens sentem-se mais tarde empobrecidos em termos de imaginação e criatividade”, comentou o Dr. Elkind. Também o Dr. Bob Marvin, na University of Virginia, salientou que décadas de pesquisas já demonstraram que as brincadeiras e as puras vivências fora das salas de aula são aquelas que colaboram mais decisivamente, durante o primeiro período de cognição infantil, para as futuras habilidades académicas adultas, e para uma competência de aprendizagem para o resto da vida.
Em 1840, após séculos de educação infantil atrelada às árduas obrigações laborais das famílias, o genial pedagogo Froebel foi o primeiro a usar a expressão “jardim” para designar locais de abrigo para crianças, reconhecendo já nessa época a importância marcante das práticas lúdicas e naturais para a formação da futura personalidade adulta. Mas nos últimos anos, sob a perspectiva cientifista do “aproveitamento estratégico da inteligência infantil”, está em curso em vários países um processo de robotização até de jardins de infância, com a instalação de potentes centros de computação disfarçados como brinquedos. Ao mesmo tempo, o mercado dos produtos para crianças, usando estratégias sem controlo ético ou educativo, veio provocar um amadurecimento prematuro das crianças, ao promover uma “compressão etária”, de modo que produtos concebidos para crianças maiores, ou até para adultos, sejam consumidos por crianças de cada vez menos idade.
No Departamento de Ciência de Computação da Universidade de São Paulo, o Dr. Valdemar Setzer vem estudando há muitos anos o tema dos Meios Electrónicos e Educação (ver o interessantíssimo livro com o mesmo título, ISBN 9788586303913). Consultado acerca do projecto Magalhães, ele declarou que semelhante medida resultará quase só inútil, ou altamente prejudicial para crianças e adolescentes. A distorção introduzida no modo de pensar, aliada aos factores mais comumente discutidos, como a perda do tempo para brincadeiras, os perigos da internet, e a falta de um auto-controlo que as crianças só alcançam mais tarde, acabam por prejudicar o rendimento escolar. Durante a última Multiconferência Mundial sobre Sistemia, Cibernética e Informática ele referiu como a totalidade do mundo educativo, a nível internacional, está hoje carente de uma profunda reforma, reforma essa que deve instituir uma intensificada humanização, e não a introdução de cada vez mais tecnologia. O tema pode ser consultado em “www.ime.usp.br/~vwsetzer/pals/palestras” que contém extenso material em língua portuguesa.
O que está em causa não é só a perda da habilidade de escrever à mão, ou a necessidade de milhões de crianças em breve terem que usar óculos para compensar a deterioração da visão. O fenómeno do uso irrestrito de meios electrónicos entre crianças na fase pré-pubertária equivale a uma verdadeira deturpação do nosso universo infantil, uma vez que os incomensuráveis danos psíquicos e orgânicos provocados a longo termo ocorrem precisamente durante os delicados primeiros passos da formação das almas infantis, prejudicando-as indelevelmente no seu desenvolvimento harmónico e saudável. Conforme o Dr. Setzer comentou com palavras rigorosas e desabridas: “Isto só poderá levar ao aparecimento de adultos anti-sociais, com ideias fixas, passivos, fanáticos e pobres em forças de compaixão e criatividade”.
Uma recolha entre todos os estudos disponíveis permite sumarizar dez efeitos que os meios electrónicos exercem sobre crianças na fase pré-pubertária: (1) Inducão de uma admiração desmesurada por máquinas, conforme o complexo funcionamento dos computadores permanece incógnito; (2) Estímulo para a ideia que máquinas dotadas de “inteligência artificial” podem em muitos casos ser mais perfeitas do que seres humanos; (3) Cultivo de uma concepção materialista do mundo, com uma visão fatalística da humanidade e da vida, do tipo “tudo é previsível e programável”; (4) Inclinação para uma estratégia de vida baseada na fé computacional de “dividir para conquistar”, ou seja, subdividir sempre um problema em partes menores, a fim de resolvê-las separadamente – o que resulta desastroso quando aplicado a seres humanos; (5) Deterioração dos valores de sociabilidade, uma vez que os computadores são usados individualmente e os contactos via internet, blogues, skype, emails, etc. permanecem sob a máscara cibernética; (6) Provocação de impulsos tendentes a realizar tudo na vida rapidamente e com variadas acções em simultâneo; (7) Debilitação das capacidades de concentração mental, contemplação e paciência; (8) Degeneração da memória e distorção da capacidade do pensamento criativo, conforme deixa de ser necessário memorizar o que é facilmente arquivável em gigantescas memórias electrónicas; (9) Incitamento à utopia de “aprender é fácil como brincar”, devido à concepção infantilóide dos softwares; (10) Eventualmente degeneração de funções neurocerebrais, devido à constante exposição a campos electromagnéticos nas proximidades da cabeça.
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A título de rifão educativo, os textos de divulgação do Magalhães apresentam para pais e mães a suposta necessidade dos seus filhos serem preparados para “competências nas tecnologias de informação e comunicação” desde o mais cedo possível. Colaboradores do projecto consultados junto à Universidade de Lisboa recomendaram até o uso a partir dos 4 anos de idade. A documentação faz uma estranha inversão de valores: os adultos são apresentados como praticamente analfabetos tecnológicos, enquanto que as crianças são enaltecidas por terem qualquer coisa como uma sabedoria nata, devido a “viverem desde o nascimento cercadas por computadores, jogos de vídeo, aparelhos de música digital, câmaras e telemóveis” e terem sempre “visto na rua ou na televisão outras pessoas a utilizá-los”. Sugere-se que as crianças possuem, como se fossem seres que vêm já semi-robotizados do útero materno, uma espécie de segunda natureza instintiva que lhes confere “um grande à vontade, em particular com os computadores, sem necessitar de explicações ou livros de instruções”. Relegados assim para o papel de passivos cuidadores de proximidade, os pais são solicitados a simplesmente admirar os filhos “naquilo que eles já sabem fazer” e acompanhá-los para que “aprendam ainda mais”. E apesar de vivermos em uma era sacudida pelo desastre da crescente desagregação social e moral entre famílias, pais e filhos, o apelo absurdo contido no texto é para que os pais “estreitem a relação com os seus filhos no que diz respeito ao mundo das tecnologias”.
Pais e mães são ainda convocados a ajudarem os seus filhos para que eles “vivam em segurança no mundo digital em que nasceram”. Isto equivale a um alerta anti-terrorista cibernético, promovendo-se nas almas infantis a noção difusa de que nos subterrâneos incompreensíveis dos computadores está presente algo de misteriosamente perigoso. Entretanto, muito mais perigoso é outro aspecto raramente discutido: a segurança pessoal das próprias crianças. Conforme anunciou o Ministério da Administração Interna no seu recente Relatório Anual de Segurança Interna, o país sofre de crescentes índices de criminalidade. Não é difícil de prever que meio milhão de crianças transportando diariamente entre casa e escola um moderno computador portátil, poderão tornar-se vítimas fáceis de assaltos, inclusive com o uso de violência.
Além do profundo choque psicológico provocado por tais eventos, qual não será o drama de isolamento vivido por uma criança de pouca idade, que além de não poder mais realizar certas tarefas em casa, seguir instruções electrónicas colectivas na escola, ou participar nas folias digitais com os seus camaradas, ainda perde, conforme promete o folheto Magalhães, a sua “comunicação com o mundo”? Em outros países já foi suficientemente estudado o insidioso fenómeno de ostracismo e tensão social que surge entre “alunos equipados” e “alunos não equipados” (inclusive por decisão de pais), resultando no aparecimento de duas classes de crianças, com efeitos desmoralizantes para toda a educação. Isto vem acrescentar-se aos novos desafios do meio-ambiente escolar, onde por exemplo nas salas de aula os professores começam a enfrentar, cada vez mais, verdadeiros pequenos tiranos que não sabem conter os seus impulsos, regular as suas emoções ou reconhecer a autoridade pedagógica dos pais e da escola.
A experiência Magalhães pretende ainda que os pais pratiquem uma fiscalização sobre o uso feito pelos filhos. A realidade é que a maioria das famílias não tem tempo, nem interesse, nem conhecimentos para isso. Se as tradicionais psicodrogas da televisão e dos jogos de vídeo já não merecem qualquer censura crítica pela maior parte dos pais – são até muitas vezes bemvindas como distracção aliviadora dos nervos dos adultos – como se pode esperar que uma família se comporte de maneira diferente perante mais uma maquineta em casa? Tal como tradicionalmente acontece com cigarros e álcool, semelhante função policial, para impedir certas conexões internéticas e imêilicas imorais, etc. só poderá provocar o aparecimento de uma tensão moral adicional no seio das famílias, alimentando entre as crianças uma curiosidade natural mais exaltada para se ultrapassar obstáculos.
A documentação para alunos vem por sua vez colaborar para esvaziar o significado humano dos professores. No Guia de Instruções para Alunos, o computador apresenta-se às crianças com uma pseudo-personalidade de “Eu”, como uma entidade orgânica que fala às crianças em termos íntimos e carinhosos para pedir coisas como “Tal como tu não deitas líquidos estranhos para os teus olhos, também não os podes deitar no meu ecrã”, ou “Cuidado com a minha alimentação”. Em caso de perda, a mais grave consequência mencionada é “Ficas sem mim”, simulando o drama da morte entre adultos. Para esta encenação dedicada a conferir, já durante os primeiríssimos passos de robotização das crianças, uma face humana às máquinas, elas são até apresentadas às crédulas mentes infantis com a máscara de uma dimensão humanista ecuménica, que permite por exemplo que “tu comuniques com o mundo”.
E quando se trata do assunto para o qual a máquina foi afinal criada, não faltam rebuçados a prometer brincadeiras: “Juntos vamos trabalhar e divertir-nos imenso”, anuncia o texto. É impossível não lembrar aqui de imediato aquele triste período fascista da nossa história, onde uma ordenação totalitária e uniformizadora do nosso universo infantil também fazia bastas promessas de divertimento. O hino oficial da Mocidade Portuguesa abria exactamente com as palavras: “Lá vamos cantando e rindo!”.
Em paralelo com a vulgarização dos computadores como instrumentos úteis e necessários para as comunicações, indústria e comércio, ocorreu um fenómeno de deslumbramento das massas adultas, desejosas de aproveitar essa tecnologia nas suas vidas particulares, não só pelas legítimas vantagens de trabalho e de rápida consulta a fontes de informações, como também para navegações úteis ou inúteis na internet, mais o conforto quase autista de poder comprar coisas sem ter que encontrar pessoas, ou ir fisicamente a lojas.
O segundo fenómeno é a fascinação irracional que a nova tecnologia, esvaziada de valores e conteúdos éticos ou morais, vem provocando inclusive nos patamares administrativos mais elevados do mundo educativo. Com a escandalosa capitulação da máquina educacional estatal perante as máquinas digitais, surge agora inclusive uma dependência escravista perante ditames do mundo dos negócios. Numa perversa deformação de propósitos, a educação – que é simplesmente o futuro da humanidade – passa assim a depender de puras estratégias economicistas, nas quais técnicos cibernéticos até vêm intervir na formação de pais e professores para implementar a táctica técnico-pedagógica desejada.
Este é o momento histórico e dramático que estamos a assistir, conforme o avanço da miscigenação homem-máquina vem promover uma nova forma de tecno-totalitarismo e tecno-idolatria pintada de promessas futurísticas, obrigando educadores a desistirem da sua função humanista e formadora primordial, para tornarem-se meras peças de um sistema robótico invisível.
Apenas com os breves dados aqui apresentados, pais conscienciosos já estarão habilitados a repensar o uso pretendido para aparelhos electrónicos na educação das suas crianças em idade pré-pubertária.
Muitos pais e mães sentem-se inseguros em relação a todos os assuntos escolares, e mantêm uma posição de servilismo em assuntos educativos, devido a uma falta de consciência sobre os seus direitos primordiais. Será útil lembrar o que está lapidarmente estabelecido inclusive em dois documentos internacionais fundamentais:
– A Declaração Universal dos Direitos Humanos, co-assinada por Portugal junto à ONU, estabelece no artigo 26/3: «Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos».
– A Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, co-assinada por Portugal junto ao Conselho da Europa, estabelece no artigo 2 do protocolo: «O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas».

Autor: Prof. Raul Guerreiro
www.defesadacrianca.net

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