sexta-feira, março 20, 2009

Venham receber as vossas Medalhas da Liberdade

A 13 de Janeiro, George W. Bush entregou “medalhas presidenciais da liberdade”, considerado o maior reconhecimento da América à devoção à liberdade e à paz. Entre os receptores estava Tony Blair, o mentiroso épico que, com Bush, tem responsabilidade pela destruição física, social e cultural de uma nação inteira; John Howard, o antigo primeiro-ministro da Austrália e vassalo americano menor que dirigiu o governo mais abertamente racista na era moderna do seu país; e Álvaro Uribe, o presidente da Colômbia, cujo governo, de acordo com o último estudo desse estado assassino, é «responsável por 90 porcento de todos os casos de tortura».

Tal como a sátira foi tornada redundante quando Henry Kissinger e Rupert Murdoch foram honrados pelas suas contribuições para o melhoramento da humanidade, a cerimónia de Bush foi pelo menos esclarecedora do sistema do qual ele e o seu refrescante sucessor são produtos. Embora mais espectacular no seu histrionismo coreografado, a tomada de posse de Barack Obama transmitiu a mesma mensagem orwelliana de verdade invertida: da brutalidade do poder criminal, senão mesmo da guerra infinita. A continuidade entre as duas administrações foi tão macia como a odiosa jura de lealdade de Bono, e simbolizada pelo juramento presidencial do presidente Obama na escadaria do Congresso – onde, apenas dias antes, a Casa dos Representantes, dominada pelo partido do novo presidente, os democratas, votou 390-5 para apoiar os ataques israelenses em Gaza. O fornecimento de armas americanas usadas nos massacres foi previamente autorizado por uma margem similar. Estas incluíam o míssil Hellfire que suga o ar dos pulmões, rebenta fígados e amputa braços e pernas sem necessidade de estilhaços: um “grande avanço”, de acordo com a literatura da especialidade. Como senador, então presidente eleito, Obama não levantou objecções ao envio célere destas armas com tecnologia de ponta [sic] para Israel – no valor de 22 mil milhões de dólares em 2008 – a tempo para o há muito planeado assalto à população cercada e indefesa de Gaza. Isto é compreensível; é como o sistema funciona. Em nenhum outro tema o Congresso e o presidente, republicanos e democratas, conservadores e liberais, proporcionam um apoio tão absoluto. Em comparação, o Reichstag alemão na década de 1930 era um tesouro de debate democrático e com princípios.

Isto não significa que presidentes e membros do Congresso não reconheçam os lobistas de Israel no seu meio como bandidos e chantagistas políticos, embora nunca o digam em público, e na verdade se passeiem em angariações de fundos sionistas e viagens pagas até ao objecto do seu ardor. Mas temem-nos. Enquanto os olhos se humedeciam a 20 de Janeiro pelo primeiro presidente afro-americano, quem se lembrava de Cynthia McKinney, a corajosa congressista afro-americana, a primeira a ser eleita pela Geórgia, que falou a favor dos palestinianos e foi devidamente expulsa do seu cargo por uma campanha de difamação sionista? Por seu lado, o actual “cessar-fogo unilateral” falso de Israel em Gaza foi preparado para não embaraçar, por enquanto, o seu novo homem na Casa Branca, cujo único reconhecimento do «sofrimento» dos palestinianos foi há muito eclipsado pelas juras de fidelidade a Telavive (até prometendo Jerusalém como capital de Israel, o que nem Bush fez) e pela sua nomeação da administração provavelmente mais pró-sionista desta geração.

Tão merecedores como Blair, Howard ou Uribe da Medalha de Liberdade de Bush, outros gritam pelo seu lugar nessa companhia. Com o ataque a Gaza, um momento decisivo de verdade e mentiras, princípios e cobardia, paz e guerra, justiça e injustiça, tenho dois nomeados. O primeiro é o governo e a sociedade de Israel (eu verifiquei; a Medalha da Liberdade pode ser atribuída colectivamente). «Poucos de nós», escreveu Arthur Miller, «conseguem facilmente abdicar da visão de que a sociedade deve, de alguma maneira, fazer sentido. O pensamento de que o Estado perdeu a cabeça e está a punir tantas pessoas inocentes é intolerável. E assim a evidência tem de ser internamente negada».

A ironia gritante disto devia ser clara em todo Israel, contudo a sua negação encorajou um culto militarista e racista que usa todos os epítetos contra os palestinianos que foram um dia dirigidos aos judeus, com a excepção do extermínio – e mesmo esse não está totalmente excluído, como referiu o ministro da defesa adjunto, Matan Vilinai, com a sua ameaça de uma shoa (holocausto).

Em 1948, o ano em que o direito de existir de Israel foi concedido e anulado o da Palestina, Albert Einstein, Hannah Arendt e outros judeus proeminentes nos Estados Unidos avisaram a administração para não se envolver com fascistas como Menachem Begin, que descreveu os palestinianos da forma como os nazis usaram untermenchen – como «animais com duas pernas». Tornou-se primeiro-ministro de Israel. Este fascismo, que não era anunciado abertamente muitas vezes, foi o precursor do Likud e do Kadima. Estes são hoje partidos políticos dominantes, cuja influência, no tratamento dos palestinianos, cobre um “consenso” nacional que é a fonte do terror na Palestina: as expropriações brutais e controlos pérfidos, a humilhação e crueldade por estatuto. O espelho disto é a violência doméstica em casa. Os soldados regressam da sua “guerra” contra mulheres e crianças palestinas e fazem guerra por conta própria. Os jovens brancos alistados no exército do apartheid sul-africano faziam o mesmo. Desumanidade em tal escala não pode ser enterrada para sempre. Quando Desmond Tutu descreveu a sua experiência na Palestina e em Israel como «pior que o apartheid», apontou que nem mesmo na África do Sul da supremacia branca havia o equivalente de estradas “só para judeus”. Uri Avnery, um dos mais corajosos dissidentes israelenses, diz que os líderes do seu país sofrem de «insanidade moral»: um pré-requisito, devo acrescentar, para a concessão de uma Medalha da Liberdade de Bush.

O meu outro nomeado para a Medalha da Liberdade de Bush é esse grupo amorfo conhecido como jornalismo ocidental, que sempre se vangloriou da sua liberdade e imparcialidade. Oiçam o modo como “porta-vozes” e embaixadores israelenses são entrevistados. Quão respeitosamente as suas mentiras oficiais são recebidas; quão minimamente são desafiadas. Eles são um de nós, estão a ver: calmos e soando como ocidentais, até loiras, femininas e atraentes. A voz assustada e atrapalhada em linha de Gaza não é um de nós. Essa é a mensagem subliminar. Oiçam os locutores usando expressões pejorativas apenas para os palestinos: palavras como “militantes” para os resistentes à invasão, muitos deles heróis, uma palavra nunca usada, e “conflito” para massacre. Notem a propaganda incessante que sugere que há duas forças iguais disputando uma “guerra”, e não um povo acossado, atacado e esfomeado pela quarta maior potência militar do mundo, que se assegura de que não têm lugar onde se refugiar. E reparem nas omissões – a BBC não antecede as suas reportagens com o aviso de que uma força estrangeira controla os movimentos dos seus repórteres, como fez na Sérvia e na Argentina, nem explica porque mostra apenas relances da extraordinária cobertura da al-Jazeera do interior de Gaza.

Há mitos disseminados, também: que Israel sofreu terrivelmente com os milhares de mísseis disparados a partir de Gaza. Na verdade, o primeiro Qassam caseiro foi disparado através da fronteira israelita em Outubro de 2001, e a primeira vítima mortal ocorreu em Junho de 2004. Uns 24 israelenses foram mortos deste modo, em comparação com 5.000 palestinianos mortos, mais de metade dos quais em Gaza, pelo menos um terço deles crianças. Agora imaginem se os 1,5 milhões de habitantes de Gaza fossem judeus ou refugiados kosovares. «A único rumo honrado para a Europa e a América é usar a força militar para tentar proteger o povo do Kosovo…», declarou o Guardian a 23 de Março de 1999. Inexplicavelmente, o Guardian ainda não apelou a tal «rumo honrado» para proteger o povo de Gaza.

Tal é a regra das vítimas aceitáveis e das vítimas inaceitáveis. Quando os repórteres quebram esta regra são acusados de “preconceito contra Israel” e pior, e a sua vida é tornada um inferno pelo ciber-exército hiperactivo que redige queixas, fornece material genérico e treina gente por todo o mundo sobre como denegrir como “anti-judeu” trabalho que não viu. Estas campanhas vociferantes são complementadas por ameaças de morte anónimas, que eu e outros experimentámos. A sua última táctica é invadir maliciosamente os websites. Mas isso é desesperado, dado que os tempos estão a mudar.

Por todo o mundo, pessoas antes indiferentes ao arcano “conflito” no Médio Oriente, começam agora a fazer a pergunta que a BBC e a CNN raramente fazem: Porque é que Israel tem o direito a existir, e a Palestina não tem? Também perguntam porque é que os fora-da-lei desfrutam de tal imunidade no mundo pristino do equilíbrio e da objectividade? Os “porta-vozes” israelitas fluentes representam o regime mais fora-da-lei existente na Terra, incluindo as tiranias exóticas, de acordo como o registo de resoluções das Nações Unidas desafiadas e as Convenções de Genebra violadas. Em França, 80 organizações estão a trabalhar para levantar processos criminais por crimes de guerra contra os líderes de Israel. A 15 de Janeiro, o excelente jornalista israelense Gideon Levy escreveu no Há’aretz que os generais israelenses «não serão os únicos a esconder-se em aviões El Al sob pena de serem presos [no estrangeiro]».

Um dia, outros jornalistas e os seus editores e produtores poderão ser chamados não apenas para explicar porque não contaram a verdade acerca destes criminosos, mas até para se sentarem no banco dos réus ao seu lado. Nenhuma Medalha da Liberdade de Bush vale isso.

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