segunda-feira, abril 06, 2009

Bertrand Russel - Sobre os sistemas sociais

Num pequeno balcão junto à porta majestosa do hall do grande recinto efectuava-se o registo de entrada ou check-in dos convidados.
- Queira Sua Exªa assinar a declaração anti-filosófica, por gentileza.
Alguns protestavam.
- Porque razão seria eu, um representante eleito pelo meu povo, obrigado a subordinar-me a exigência tão extemporânea?
- Saiba Sua Exª que o G20, como associação responsável que é, reconhece a incompatibilidade entre o cheiro do caviar e as ideias dos filósofos.
- Bom, sendo assim, onde devo assinar?


Caro Leitor:
Descubra aqui como um filósofo consegue antecipar por mais de quarenta anos aquilo de que anda hoje a fugir a nata dos nossos representantes. Esta é uma das razões porque gosto tanto dos filósofos. Não arrastarão multidões, certo, mas dão pistas maravilhosas para conseguirmos discernir uma linha de força no aparente caos dos acontecimentos. A clareza não se encontra no lado das palavras que o G20 pronuncia, mas sim no das que silencia. Infelizmente. (AF)

Qualquer homem que deseje, como eu, uma mudança fundamental na estrutura da sociedade, é forçado, mais tarde ou mais cedo, a pôr-se a si mesmo a questão: o que é que lhe faz parecer um sistema social bom ou mau?

Este é, indubitavelmente, e em larga medida, um assunto de natureza pessoal. Em história, por exemplo, uns preferem uma época, outros outra. Alguns admiram as épocas cultas e civilizadas, enquanto outros preferem as virtudes rudes dos tempos mais bárbaros. Uns não querem pensar que as opiniões políticas resultam de meros caprichos preferenciais desta espécie, enquanto eu creio que uma grande parte da opinião política provém, em última análise, de um certo, inconfessado, inexaminado, quase insconsciente, amor por um certo tipo de sociedade actual ou imaginária. Penso que é possível chegar a algo menos subjectivo do que estes caprichos e fantasias, e julgo que o defensor de uma mudança fundamental, mais obviamente que qualquer outro, precisa encontrar o modo de criticar um sistema social que não esteja meramente imbuído dos seus gostos pessoais.

As opiniões políticas dos homens são defendidas com argumentos - argumentos tais como estes: este caminho conduzirá à guerra, aquele à escravidão económica, aqueloutro à miséria. Mas, ao escolhermos o perigo que declaramos pretender evitar, ou a vantagem que proclamamos, somos quase todos dominados por uma vaga imagem desta espécie de sociedade que gostaríamos que existisse.

Um homem não tem medo da guerra, sente-se atraído pela imagem dos heróis cujas lutas contempla com admiração. Outro, não sente medo da escravidão económica, porque ambiciona, para si e para os seus amigos, tirar partido de uma posição de condutores de escravos, ao invés de se tornarem eles próprios escravos. Outro não teme a miséria, porque tem um depósito de víveres oculto, e crê por isso que a privação põe em relevo o heroísmo latente no homem. E, deste modo, eles diferem no caminho que escolhem para ser prosseguido, e os próprios graus das suas diferenças permanecem obscuros para eles e para os outros. Sendo obscuros, encerram matéria para infindáveis disputas. O único caminho para tornar os juízos políticos do povo mais conscientes, mais explícitos, e por isso mais científicos, é trazer à luz do dia uma concepção da sociedade ideal que esteja em cada opinião humana, e descobrir, se possível, um método de comparar tais ideiais relativamente à universalidade, ou melhor, à suas solicitações.

Proponho-me, antes que tudo, examinar alguns modos de julgar um sistema social que sejam comuns, mas os quais eu creio serem errados, e, depois, sugerir os caminhos em que penso que tais opiniões deviam ser formadas.

Entre muitos povos e em muitas épocas, o caminho mais comum de julgar é simplesmente pelos preconceitos transmitidos pela educação. Qualquer sociedade que não esteja num estado de transição rápida possui crenças e costumes que foram transmitidos pelas gerações passadas, os quais são indiscutíveis, e contra os quais parece monstruoso ir-se. Tais costumes estão ligados à religião, à família, à propriedade, etc. O mérito especial dos gregos foi devido largamente ao facto de, sendo um povo comercial marítimo, terem deparado com costumes e crenças de inúmeráveis e muitíssimo diferentes nações, e serem levados a um exame céptico das bases de todos estes costumes, incluídos os seus próprios.
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Tais experiências de intercâmbio com outras nações enfraquece o poder que as crenças meramente herdadas têm sobre o homem que vive num ambiente fixo. Na nossa época, este resultado é produzido não só com as viagens e o comércio, mas também pelas mudanças no meio social, inevitavelmente causadas pelo desenvolvimento do industrialismo. Em toda a parte em que a indústria está desenvolvida e não constitui novidade, nota-se que a religião e a família, que são os dois sustentáculos de todas as estruturas sociais tradicionais, perdem o seu poder nos espíritos dos homens. Consequentemente, a força da tradição é menor no presente que no passado. Contudo, até mesmo agora, é provavelmente tão grande quanto todas as outras forças combinadas. Repare-se, por exemplo, na crença da propriedade privada - crença nascida originariamente com a família patriarcal, e que consiste no direito que cada homem supõe ter relativamente ao produto do seu próprio trabalho, ou ao direito que ele foi capaz de obter naquilo que conquistou com a espada. Apesar da antiguidade e diminuição do poder destas origens remotas da crença na propriedade privada, e apesar do facto de nenhumas novas origens serem apontadas, a grande maioria da humanidade tem uma profunda e indiscutível crença nestas inviolabilidades, devidas em grande parte ao tabu que resulta destas palavras "Não roubarás!". É certo que a propriedade privada é uma herança da era pré-industrial, quando um indivíduo ou uma família podiam fazer qualquer produto com as suas próprias mãos. Num sistema industrial um homem nunca faz o todo de qualquer coisa, mas uma milésima parte de um milhão de coisas. Nestas circunstâncias, é totalmente absurdo dizer que um homem possui um direito relativamente ao produto do seu próprio trabalho. Considerai um carregador numa estação, cuja ocupação é carregar e descarregar comboios de mercadorias: que proporção de mercadorias carregadas pode representar o produto do seu trabalho? A questão é totalmente impossível de resolver.

Deste modo, é impossível assegurar a justiça social dizendo que cada homem deve possuir o que ele próprio produz.
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Foi por (os bolcheviques) terem recusado a crença na inviolabilidade da propriedade privada que a perseguição foi tão grande. Mesmo entre os socialistas declarados, há muitos que sentem um estremecimento de horror ao pensar na expulsão dos homens ricos das suas casas, para darem lugar aos proletários. Tais sentimentos instintivos são difíceis de vencer, por razões óbvias. Os poucos homens que conseguem isso, tais como os bolcheviques, têm que enfrentar a hostilidade do mundo. Mas com a criação actual de uma ordem social que não tenha em vista somente os malefícios tradicionais, está-se mais habilitado a destruir tais malefícios nos espíritos vulgares do que aquilo que pode ser feito em um século de propaganda teórica. Creio que se mostrará, quando, na devida altura, os homens observarem as coisas na sua verdadeira proporção, que o principal serviço prestado pelos bolcheviques assenta na recusa prática da crença na propriedade privada, crença que não existe, de modo algum, somente entre os ricos, e constitui no momento presente um obstáculo ao progresso fundamental - um tão grande obstáculo, que unicamente a sua destruição tornará possível um mundo melhor.
http://ferrao.org/

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