sexta-feira, abril 24, 2009

Boicotar a denúncia do racismo

Em 20 de Abril passado, os embaixadores europeus na ONU abandonaram a Conferência Mundial sobre o Racismo da Organização das Nações Unidas (ONU), que se celebrava em Genebra, indignados, para protestar pelas palavras do discurso do presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad. Vejamos o que disse Ahmadinejad:

«Aos distintos presentes quero expressar-lhes a minha posição. Desde a Segunda Guerra Mundial, e sob o pretexto do sofrimento do povo judeu, e utilizando inadequadamente o holocausto, eles reiteraram as suas agressões militares contra toda uma nação de palestinianos. Eles, sendo imigrantes da Europa, dos EUA e de outras partes do mundo, estabeleceram um governo totalmente racista na Palestina ocupada. Sob a desculpa de compreensão do racismo e das suas consequências na Europa, os israelitas levaram o governo mais cruel e racista a outras partes do mundo como a Palestina [saem de forma coordenada os delegados europeus]. As raízes do ataque dos EUA ao Iraque e a sua invasão do Afeganistão estão na arrogância da anterior Administração dos EUA e na pressão imposta por poderes descontrolados para expandir a sua influência nos interesses do complexo industrial e fabricantes de armamento [nesse momento abandonam a sala vários diplomatas, entre eles o espanhol].

Acreditamos na necessidade de um mundo novo, com uma mudança de políticas e comportamentos. Os representantes que acabam de abandonar a sala são uma minoria, recomendamo-lhes que aumentem a sua capacidade de tolerância. Tudo deve estar baseado no respeito mútuo e na justiça.» [1], relativa ao tema intitulado “Questão da Palestiniana”. Nela, falou de «quanto se assemelham as políticas israelitas no território palestiniano ocupado ao apartheid que existiu noutra época e noutro continente». E acrescentou o seguinte:

«Acho que é muito importante que nós, nas Nações Unidas, usemos este termo. Não devemos ter medo de chamar as coisas pelo seu nome. Afinal de contas, foram as Nações Unidas que aprovaram a Convenção Internacional sobre a Repressão e o Castigo do Crime de Apartheid e mostraram claramente a todo o mundo que este tipo de práticas de discriminação oficial se devem proibir em todos os casos.

Hoje escutamos um representante da sociedade civil da África do Sul. Sabemos que em todo o mundo há organizações da sociedade civil que trabalham para defender os direitos dos palestinianos e tentam proteger a população palestiniana, coisa que nós, as Nações Unidas, não estamos a fazer.

Há mais de vinte anos, as Nações Unidas tomaram a iniciativa da sociedade civil e acordaram que era necessário impor sanções para pressionar de uma forma não violenta a África do Sul, para que pusesse fim às violações que estava a cometer.

Hoje, Talvez devêssemos analisar a possibilidade de que as Nações Unidas sigam o exemplo de uma nova geração da sociedade civil, que pede que se adopte uma campanha não violenta similar de boicote, desinvestimento e sanções dirigida a pressionar a Israel para que deixe de cometer violações dos direitos humanos.»

Também se teriam ido embora os representantes europeus ao escutar isto?

Podemos ir também mais atrás no tempo. A denúncia do racismo contra os palestinianos já foi escutada na primeira Conferência da ONU contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, em Setembro de 2001, em Durban (África do Sul). Ali foi o então presidente de Cuba Fidel Castro quem afirmou o seguinte:

«Ponha-se fim o quanto antes ao genocídio do povo palestiniano, que tem lugar diante dos olhos atónitos do mundo. Proteja-se o direito elementar à vida dos seus cidadãos, dos seus jovens e das suas crianças. Respeite-se o seu direito à independência e à paz, e nada haverá que temer dos documentos das Nações Unidas.

Sei bem que, na procura de alívio para a situação terrível em que se encontram os seus países, muitos amigos africanos e de outras regiões sugerem a prudência necessária para obter algo nesta Conferência. Compreendo-os, mas não posso renunciar à convicção de que quanto com mais franqueza se digam as verdades, mais possibilidades haverá de que sejamos escutados e respeitados. Séculos de engano são mais do que suficientes.»

Mas vejamos se Israel é ou não um estado racista. Antes e depois da fundação do Estado de Israel em Maio de 1948, as milícias sionistas obrigaram umas 750.000 pessoas a deslocar-se, todas de etnia árabe e habitantes autóctones da zona. Para isso destruíram mais de quinhentas cidades e povoações e perpetraram massacres indiscriminados de civis desarmados, como o de Deir Yashin, na qual assassinaram a sangue frio 254 mulheres, crianças e idosos. Dessa forma, Israel apropriava-se pela força de 78% do território da Palestina histórica sob o Mandato Britânico, quando legalmente a ONU só lhe atribuiu 55 %, e isso apesar de que só compunham um terço da população e de que tinham anunciado o que agora chamamos “limpeza étnica” nas zonas que lhes correspondessem. Depois disto, umas 150.000 pessoas que conseguiram permanecer no novo Estado judeu de Israel converteram-se nos chamados “árabes-israelitas”, ainda que não por isso gozassem de todos os direitos da cidadania, já que ficariam sob jurisdição militar até 67. Os 800.000 árabes-israelitas da actualidade, descendentes daqueles, não são portanto considerados cidadãos, mas estrangeiros sem direitos sobre o território, e são discriminados sistematicamente.

A chamada “única democracia do Médio Oriente” nega desde 1967 o direito a uma nacionalidade a mais de três milhões e meio de pessoas que vivem nos Territórios Ocupados (quase metade em campos de refugiados), e dessa forma perdem todo o direito a exigir direitos, ao mesmo tempo que outros seis milhões de pessoas foram condenadas ao exílio e vivem na sua maioria em campos de refugiados na Jordânia, no Líbano e na Síria. Nos Territórios Ocupados, as normas que governam são mais de duas mil ordens militares que regulam todos os aspectos e subordinam por completo a vida dos três milhões e meio de árabes-palestinianos à dos aproximadamente trezentos e oitenta mil colonos judeus que ali se instalaram.

A Amnistia Internacional, no relatório intitulado “O racismo e a Administração da Justiça”, difundido em 2001, punha em evidência o racismo da “democracia” israelita:

«Em Israel, por exemplo, várias leis são explicitamente discriminatórias. Tudo remonta à fundação do Estado de Israel em 1948, a qual, impulsionada em princípio pelo genocídio racista sofrido pelos judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, baseava-se na premissa de um Estado judeu para o povo judeu. Algumas das leis de Israel reflectem este princípio e, em consequência, discriminam os não judeus, em concreto os palestinianos que viveram nestas terras geração após geração. Várias secções das leis israelitas discriminam os palestinianos. A Lei da Retorno, por exemplo, oferece automaticamente a cidadania israelita aos imigrantes judeus, enquanto aos refugiados palestinianos que nasceram e cresceram no que agora é Israel é-lhes negado inclusive o direito a regressar ao seu lar. Outros pontos garantem explicitamente um trato preferencial aos cidadãos judeus em esferas como a educação, a moradia pública, a saúde e o trabalho.» [2]

Israel não tem Constituição, no site do Parlamento israelita assinala-se que «todas as leis orgânicas, em conjunto, constituirão, com uma introdução apropriada e diversas normas gerais, a Constituição do Estado de Israel». O estudo elaborado pelo intelectual palestiniano Mazin Qumsiyeh [3] sobre a legislação israelita assinala que «os não judeus não podem fazer parte da nação de Israel ou Am Yisrael (o povo de Israel), ainda que sejam cidadãos do Estado. É importante enfatizar este ponto. Para a lei israelita todos os judeus, independentemente de aspectos culturais, genéticos ou de cidadania, têm a consideração de nativos israelitas, um membro de Am Yisrael e têm direito a beneficiar automaticamente da residência, de viver no autoproclamado Estado Judeu. A legislação israelita estabelece como se adquire a nacionalidade [4]. Assim, observa-se que um palestiniano nascido numa povoação da Galileia expulso em 1948 não cumpre os requisitos, de forma que existe a categoria de cidadão nacional ou cidadão não nacional. Os que são cidadãos mas não nacionais (como os palestinianos que ficaram depois das expulsões de 1947-1949) não podem beneficiar de nenhuma das instituições e privilégios reservados aos nacionais. Desta forma, os palestinianos que não podiam chegar a ser cidadãos tinham a sua propriedade atribuída aos judeus de acordo com as “Leis dos ausentes”, promulgadas em 1950. O curioso é que muito desses “ausentes” são “ausentes presentes”, trata-se daqueles palestinianos que permaneceram dentro das fronteiras do Estado. O resultado é o regime de apartheid vigente na actualidade. Segundo a lei israelita, fundamentada no seu ideal de “Estado do povo judeu”, um imigrante sionista europeu tem total direito a viver num colonato em Hebron, enquanto um palestiniano da mesma cidade pode ver-se forçado a emigrar devido a todas as restrições que se impõem ao campo social e económico da zona para oferecer segurança aos habitantes fundamentalistas dos colonatos ilegais [5]. Essa distinção entre judeu e não judeu é o que oferece a base para falar sobre a existência de um sistema de apartheid em Israel, onde o facto de ter uma religião específica determina o direito à saúde, à educação, à continuidade territorial, à liberdade religiosa e ao acesso à água, entre outros.

A população palestiniana está submetida a um regime de ocupação militar que concede direitos diferentes, começando pelo direito a voto, a pessoas que habitam no mesmo território, segundo a sua religião. Para os palestinianos, ocupação não só tem significado morte, mas um sistema de discriminação racial que domina absolutamente todos os aspectos das suas vidas: Que se diria hoje por exemplo se algum país tivesse como política oficial a expropriação de terras de judeus, ou simplesmente proibisse que um cidadão do seu país pudesse assentar-se nele se se casasse com uma judia? Claramente se falaria de um flagrante caso de discriminação, de anti-semitismo e, seguramente, de sanções internacionais contra desse país, como durante o apartheid sul-africano. Vejamos vários exemplos da restrição de direitos aos cidadãos não judeus do Estado de Israel e como se consolidam por meio da legislação israelita e de uma série de instituições [6]:

A) Fundo Nacional Judeu: 90% das terras de Israel pertence a esta instituição, que, segundo os seus estatutos, não pode vender, arrendar ou sequer permitir que essa terra seja trabalhada por um “não judeu”.

B) Lei de Nacionalidade: Estabelece claras diferenças na obtenção da cidadania para judeus e não judeus.

C) Lei de Cidadania: Nenhum cidadão israelita pode casar-se com um residente dos Territórios Ocupados da Palestina; no caso de se realizar a união, perdem-se os direitos cidadãos em Israel e a família, se não for separada, deve emigrar.

D) Lei de Retorno: Qualquer judeu do mundo pode ser cidadão israelita. No caso dos cidadãos palestinianos do estado de Israel que têm familiares no estrangeiro, estes não podem obter o mesmo benefício só pelo facto de não serem judeus.

E) Lei do Ausente: Declara ausente qualquer pessoa que estivesse fora da sua casa, dentro das fronteiras de Israel ou num Estado vizinho, depois do dia 29 de Novembro de 1947, ou nesse mesmo dia, e em consequência as suas terras e as suas casas passam a ser propriedade judia. Paradoxalmente, nunca se expropriou a terra de um judeu e a maioria dela foi expropriada aos palestinianos.

Outro exemplo do carácter religioso do estado israelita que o torna incompatível com um Estado de direito democrático é que, segundo a legislação, «não poderão concorrer às eleições para o Parlamento aquelas listas de candidatos cujas intenções ou acções neguem a existência de Israel como o Estado do povo judeu». Com esta lei passa a ser claramente ilegal o facto de solicitar mudanças na legislação para poder questionar o conceito de Estado duma comunidade religiosa, não aceitar o conceito dum Estado do “povo judeu”, ou tratar de converter Israel no Estado de todos os seus cidadãos [7]. Ninguém se atreveria a afirmar que uma democracia pode ser compatível com um regime de apartheid, contudo em Israel há estradas diferentes para os israelitas e para os palestinianos. O mundo indigna-se quando recorda que na África do Sul os negros deviam viajar nos assentos de trás dos autocarros, mas em Israel se um palestiniano utilizar uma das estradas reservadas aos israelitas é detido e condenado a seis meses de prisão. Isto afecta inclusive aqueles que viveram sempre nesses territórios, por exemplo os cerca de trezentos e quarenta mil que vivem em Jerusalém Oriental [8] .

Não só tudo isto é silenciado e conta com a cumplicidade dos governos europeus, como quando, num lugar como a ONU, é denunciado por um presidente, os “diplomatas” europeus abandonam a sala. Vale a pena olhar para as explicações dos europeus para justificar o seu abandono da sala. O embaixador britânico perante a ONU, Peter Gooderham, afirmou que «esta retórica inflamatória não tem de nenhuma forma cabida numa conferência da ONU sobre o racismo e como o combater». Por sua vez, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, qualificou a intervenção de Ahmadinejad de «discurso de ódio».

Os europeus – e, evidentemente, israelitas e estadunidenses – teriam desejado uma Conferência de palavras vazias, uma ode à igualdade das raças, talvez um anúncio da Benetton. Mas existem muitas vozes que, quando se fala de racismo, querem apontar o racista, como se fez antes com a África do Sul. A hipócrita Europa não o pôde suportar. Com isso, os seus governos ultrapassaram a sua miséria e cumplicidade com o racismo, passaram de permiti-lo a boicotar a sua denúncia.

A informação sobre o carácter racista do estado israelita provém do livro de Pascual Serrano Desinformación. Cómo los medios ocultan el mundo, a ser editado no próximo mês de Maio pela editorial Península.
[1] Este trecho citado por Pascual Serrano difere da versão publicada no canal iraniano Press TV (ver a tradução completa do discurso para português ao fundo da página, em anexo), bem como da versão publicada no Foreign Policy Journal. Nelas, não há qualquer menção do Holocausto. (NT]

Já antes do início da Conferência, Israel, Estados Unidos, Itália, Austrália, Canadá, Polónia, Alemanha, Holanda e Nova Zelândia se tinham negado a participar porque sabiam que Israel ia receber duras críticas. A saída de outros representantes, na sua maioria europeus, durante o discurso do presidente iraniano deve-nos levar a pensar e a pedir explicações sobre o que havia nele que lhes parecia intolerável e que merecia essa posição.

Uma das coisas que se pôde saber é que o boicote estava já planificado. Assim o reconheceu o embaixador sueco perante a ONU, Hans Dahlgren, à agência de cabos noticiosos TT e publicado no site do canal de televisão SVT: «O sentido [das palavras de Ahmadinejad] era que Israel é um regime racista. Escutamo-lo em inglês ou em francês, mas como ele fala persa e não existia uma versão escrita [do discurso] (…) então tínhamos acordado que, se se dissesse isso, já não íamos ficar [na sala]».

O embaixador espanhol perante a ONU, Javier Garrigues, foi um dos diplomatas que abandonou a sala. Seguiu consigna-a dada pela presidência checa da UE, que previu tomar uma posição perante Ahmadinejad mas voltar depois para continuar com a conferência. «O presidente falou de um Estado racista e por isso nos fomos», assegurou Garrigues. «Esta retórica inflamatória não tem de modo nenhum cabida numa conferência da ONU», afirmou.

O que é curioso é que passou despercebida uma declaração do presidente da Assembleia Geral, Miguel d’Escoto, a 24 de Novembro passado [[Declaración del presidente de la Asamblea General relativa al tema 16 del programa, titulado “Cuestión de Palestina”, Nações Unidas, Nova Iorque, 24/11/2008.

[2] Relatório da Amnistia Internacional, de 2001: Racism and the Administration of Justice (Racismo e a Administração da Justiça).

[3] Mazin Qumsiyeh, Compartiendo la Tierra de Canaán (Capítulo 7). Pluto Press, 2004.

[4] Ver www.israel.org/MFA/Facts%20About%20Israel/State/Acquisition%20of%20Israeli%20Nationality.

[5] Xavier Abu Eid, Jurisdicción y Legitimidad: Claves para entender el conflicto Palestina/Israel. Rebelión, 28/08/2006.

[6] Xavier Abu Eid, Jurisdicción y Legitimidad: Claves para entender el conflicto Palestina/Israel. Rebelión, 28/08/2006.

[7] Mazin Qumsiyeh, Compartiendo la Tierra de Canaán (Capítulo 7). Pluto Press, 2004.

[8] Ignacio Ramonet, “Por una resistencia de masas no violenta contra Israel”. Entrevista com o líder palestiniano Mustafá Barghouti. Le Monde Diplomatique, Maio de 2008.
Pascual Serrano
http://infoalternativa.org/spip.php?article803

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