Johann Gutenberg nasceu no séc. XIV, em Mainz, na Alemanha, e morreu a 3 de Fevereiro de 1468. Ficou célebre devido à sua revolucionária invenção que permitia pela primeira vez imprimir livros a um custo muitíssimo inferior quer às cópias anteriores laboriosamente feitas à mão, quer a outros métodos de impressão. O efeito cultural e social da sua invenção é muitas vezes referido pelos historiadores: a disseminação da cultura escrita que a sua invenção possibilitou terá sido um dos motores de uma parte importante dos desenvolvimentos a que se assistiu na Europa a partir do séc. XV.
Poucas pessoas conhecem, contudo, as dificuldades financeiras que Gutenberg enfrentou. Teve várias vezes de pedir dinheiro emprestado, para financiar a sua investigação, e acabou por ser levado a tribunal quando os investidores ficaram insatisfeitos com a sua falta de pagamento, ou quando quiseram deitar mão a parte da riqueza que a sua invenção previsivelmente traria. Acabou por viver os últimos três anos da sua vida de uma pensão concedida pelo arcebispo de Mainz, o que sugere que a riqueza lhe passou ao lado, ainda que não tenha ficado propriamente na miséria.
As minhas críticas ao Projecto Gutenberg parecem estranhas. Não é este projecto afinal uma justa homenagem a esse inventor sagaz, talvez responsável pelo desenvolvimento cultural de que somos herdeiros? A resposta é negativa. Este projecto é uma mancha na memória de Gutenberg, que teve precisamente de lutar arduamente para se financiar: precisamente por não ser um aristocrata, não podia dar-se ao luxo de trabalhar sem ganhar dinheiro. O Projecto Gutenberg está enraizado na nova mentalidade digital da exploração do trabalho voluntário alheio, e as consequências desta mentalidade são desastrosas.
Imagine-se o que seria Gutenberg ter determinado que, para se usar a sua invenção, era preciso que quem manipulasse as impressoras trabalhasse voluntariamente. Afinal, o argumento seria precisamente o mesmo do actual Projecto Gutenberg: trata-se de um trabalho de grande valor cultural, importante para muitos milhões de pessoas. Mal se pensa sobre o que teria acontecido com a invenção de Gutenberg percebe-se o que está hoje a acontecer. Pois é evidente que a disseminação cultural que a invenção de Gutenberg permitiu só existiu porque as pessoas que trabalhavam nas impressoras eram remuneradas. Isso permitiu o aparecimento de técnicos especializados em impressão, alguns dos quais mais tarde se tornaram jornalistas e editores. Nada disto teria sido possível caso se exigisse um trabalho missionário, gratuito, pois nesse caso só os ricos teriam podido fazer esse trabalho e nunca se teria desenvolvido a indústria editorial que hoje conhecemos e prezamos.
Este é um dos problemas de actividades digitais bem-intencionadas como o Projecto Gutenberg: o resultado é desastroso. Porque não permite o aparecimento de um corpo profissional remunerado de pessoas que façam esse trabalho, este nunca se desenvolve, ficando refém das disponibilidades que uns reformados simpáticos calham a ter, nos intervalos da novela e da operação à próstata. A digitalização e difusão de livros de domínio público é muito importante; a existência de enciclopédias de qualidade é também muito importante; tal como apanhar o lixo das cidades é muito importante. Em qualquer destas actividades, se dependermos do trabalho voluntário gratuito, estamos a fazer um mal parecendo que fazemos um bem. Estamos a fazer um mal porque não permitimos o desenvolvimento de melhores maneiras de fazer essas actividades, e porque tiramos empregos a milhares de pessoas que neste momento estão desempregadas e que teriam outras perspectivas de vida. E estamos a prejudicar gravemente a vida económica de todos, porque a nossa riqueza depende crucialmente das trocas comerciais, da compra e venda de bens e serviços. Para quem está desempregado, o voluntário que lhe faz gratuitamente o trabalho que ele poderia fazer numa empresa ganhando o seu ordenado não é uma figura assim tão simpática.
O Projecto Gutenberg tem outros problemas de fundo. Em primeiro lugar, digitaliza os livros de um modo que tem primariamente em mente a leitura de fim-de-semana — porque ninguém pode citar profissionalmente a página do livro original, dado que o Projecto privilegia formatos que não preservam a paginação original. Se eu encontrar uma obra de Hume, por exemplo, não posso citá-la no meu trabalho porque não sei em que página está a passagem que usei. Neste caso, a digitalização em curso da Biblioteca Nacional de Portugal é meritória precisamente por usar formatos que preservam a paginação original: o PDF e a imagem JPG. E o mesmo faz o Google.
O que nos traz de volta ao Google, que já referi noutros artigos. A canibalização que o Google Books está a fazer dos livros de domínio público só é possível precisamente porque existe esta mentalidade digital alimentada pelo Projecto Gutenberg: a de que o produto do trabalho cultural deve ser gratuito para ser bonito. Como o Google descobriu uma maneira de ganhar dinheiro, através da publicidade, sem que as pessoas tenham de pagar directamente ao Google, tendo por isso a impressão de que estão a consumir coisas de graça, este gigante norte-americano tem todo o interesse em pôr tanto quanto possível tudo na Internet. Claro que o Google não depende do trabalho voluntário, como o Projecto Gutenberg, dado que ninguém bom da cabeça estaria disposto a trabalhar de borla para os capitalistas multimilionários que controlam o Google. Mas o efeito económico é o mesmo: como oferecem os livros de borla na Internet, nenhuma outra empresa de digitalização pode competir com o Google Books. Caso não existisse a mentalidade aristocrática de que a cultura deve ser de borla, mentalidade que alimenta o Projecto Gutenberg e o Google Books, existiriam hoje centenas de empresas especialistas na digitalização e venda de livros de domínio público, e milhares de profissionais poderiam viver desta importante actividade.
É aqui que se esconde uma das mentiras fundamentais associada a esta mentalidade: oferecemos uns livritos digitais aos pobres, coitadinhos, que também têm direito à cultura, mas ao mesmo tempo obrigamo-los a continuar a ser pobres porque tornamos impossível que possam ser remunerados trabalhando na digitalização de livros. Isto faz lembrar uma das tiras mais memoráveis da Mafalda, de Quino, quando a Suzaninha comenta que é uma sorte haver pobres senão teria de se mandar para o lixo a roupa velha.
http://dererummundi.blogspot.com/
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