– "O pico petrolífero significa o fim da capacidade de suportar o serviço da dívida, a todos os níveis: pessoal, corporativo e governamental."
por Jim Kunstler [*]
No mesmo momento em que uma onda de náusea inundava a América, na semana passada, e os registos do desemprego inchavam com um acréscimo muito superior a meio milhão, a maior corrida de especuladores do mercado de acções em 70 anos arrastava o último dos crédulos. Estes são dias estranhos. A terra está a tremer e esses sujeitos incham outra vez – pelo menos ao Norte do equador, onde decorre a maior parte da acção – e a economia global, que parecia ser o novo complemento permanente da condição humana, cospe escarros horrendos. Mas ninguém responsável por alguma coisa parece acreditar nisso. O fiasco bancário introduziu tanto ruído no sistema que as lideranças mundiais já não podem pensar direito.
O que eles estão a omitir é a simples realidade: o pico petrolífero significa o fim da capacidade de suportar o serviço da dívida, a todos os níveis: pessoal, corporativo e governamental. Fim de história. Todos os esforços efectuados que ignoram este facto básico da vida equivalem ao sapatear convulsivo diante da cortina de fumaça que esconde um mundo de prejuízos. Se a "facilidade quantitativa" (criação de dinheiro) e a prestidigitação fiscal (TARP's, TARFs, etc) porventura elevasse a "velocidade" deste novo funny-money [1] e o mundo retomasse ao seu nível anterior de utilização do petróleo, o preço deste dispararia outra vez – desta vez astronomicamente porque o crash anterior dos preços do petróleo esmagou o desenvolvimento de novos projectos petrolíferos destinados a compensar o esgotamento – e a economia global entrará em crash mais uma vez. Só a fase seguinte da doença pode ir além do financeiro e entrar na esfera do social e do político. A desordem de vários tipos dominará – derrube de governos, inquietação civil, tensão e conflito internacional.
Os EUA estão a fazer todo o possível para evitar estas terríveis realidades, mas provavelmente o pior auto-engano é a ideia de que tudo estaria bem se pudéssemos simplesmente "recomeçar a emprestar". Isso é exactamente o que não vai acontecer. Não há mais capacidade para o serviço da dívida que já acumulámos. Os americanos tomaram demasiado emprestado e os banqueiros que fizeram fortunas obscenas em taxas, comissões e bónus através de empréstimos fraudulentos conseguiram alavancar esta dívida impagável na maior trapaça colectiva que o mundo alguma vez experimentou. A trapaça injectou veneno em cada célula do organismo macro sócio-económico e é improvável que novas trapaças o ressuscitem.
A corrida às acções, as financeiras em particular, pode perdurar mais um mês ou dois. Nesse ínterim, os bancos estão a esforçar-se desesperadamente para evitar cancelar mais maus empréstimos – especialmente no imobiliário comercial, centros comerciais – porque não querem mais perdas nos seus balanços. Isso pode continuar só por mais algum tempo. Mais cedo ou mais tarde o encadeamento de credibilidade nas transacções fundamentais do negócio perde legitimidade e algo tem de ceder.
A minha estimativa é que terá lugar, em algum momento após o Memorial Day [2] (mas talvez antes), na forma de liquidações maciças de tudo sob o sol da América do Norte: companhias, casas, bens móveis, papéis do Tesouro dos EUA de toda espécie e, naturalmente, o S&P 500. Logo descobriremos se num organismo da dimensão dos Estados Unidos pode funcionar uma economia baseada na venda do conteúdo da garagem de uma família para a família da porta ao lado. A minha suposição é que este tipo de economia não suportará os padrões de vida antes desfrutados em lugares como Dallas e Minneapolis.
O resultado sócio-político da ira e decepção inerente a tudo isto pode ser severo. O público já está a aquecer-se para isso, com vedetas tais como Glen Beck na Fox TV a apelar à formação de milícias e armas a desaparecerem das lojas. Um erro que a elite banqueira e os seus paladinos juristas cometeram na última década foi a ostentação de aquisições visíveis – especialmente casas – em lugares nos quais podem ser facilmente incomodados, onde podem ser vistos por todos, como por exemplo multidões iradas em Fairfield County, Connecticut, ou Easthampton, New York. Ao contrário das elites sitiadas da África do Sul (que visitei recentemente), as quais vivem por trás de camadas de fortificações, os executivos do Citibank, Goldman Sachs, J.P. Morgan e de uma longa lista de hedge funds serão encontrados encolhidos nas suas adegas por trás de uma miserável cerca viva quando indivíduos tatuados açulados por Glen Beck [3] vierem buscá-los.
Isto talvez pudesse ser evitado se alguém com autoridade, como o Procurador Geral Eric Holder, tomasse um interesse agressivo pelas múltiplas trapaças da última década e principiasse alguns processos. Mas a janela de oportunidade para este tipo de acção de melhoria pode encerrar-se mais cedo do que o governo e os media de referência acreditam. A mudança de fase social, como nas formações de multidões, não está fixada. Uma vez partida a primeira janela, desaparecem todas as apostas de estabilidade social. Minha conjectura é que os vários salvamentos-prenda para os banqueiros foram demasiado longe aos olhos deste público cada vez mais inflamável.
Não tivemos nenhuma experiência anterior com este tipo de inquietação social. A violência da era do Vietname parecerá muito limitada e razoável em comparação – no sentido de que era um levantamento no terreno dos princípios, não da sobrevivência. E a Guerra Civil foi um assunto totalmente arregimentado entre duas facções rivais. Desta vez, pessoas com pouco interesse em princípios, para além de uma ténue ideia de justiça económica, estarão a brandir ferros em brasa como resultado desta absoluta má-fé e malícia. No momento em que Lloyd Blankfein [4] tiver visto as tochas a tremularem no seu canteiro de flores será demasiado tarde para defender a honra da sua máquina de cappuccinos.
O presidente Obama terá de mudar drasticamente o seu plano de jogo actual se quiser evitar este desenlace. Penso que ele é capaz de anular o crime organizado – de impedir os gafanhotos de se transformarem em nuvens – mas será preciso um extraordinário exercício de autoridade para isso, tal como a verdadeira (não a pretensa) nacionalização dos grandes bancos, planear a saída de Ben Bernanke da Reserva Federal, engolir a ignomínia de ter de substituir o regulador fracassado Tim Geithner no Departamento do Tesouro e lançar os cães sobre os trapaceiros que tiveram a ousadia de jogar o seu país por um rebuçado.
Como declarei mais de uma vez neste espaço, o padrão de vida na América terá de vir abaixo. Nós hipotecámos o nosso futuro e o futuro começou agora. Duros carolos para nós. Mas a generalidade do público não aceitará a realidade disto enquanto os grandes das finanças e os seus seguidores incondicionais ainda aparentarem desfrutar a boa vida. Eles terão de ser duramente rebaixados, talvez mesmo desgraçados e humilhados nos tribunais e certamente apartados de algo das suas fortunas – ainda que seja só com honorários de advogados. O sr. Obama quase deu a notícia disto na semana passada, ao contar a uma delegação de banqueiros na Casa Branca que ele era a única coisa que se postava entre eles e "os forcados". É possível que esteja a entender a situação.
[1] Funny Money: dinheiro falsificado; dinheiro que foi inflacionado ou deflacionado de modo artificial por razões políticas; dinheiro fabricado por meios desonestos.
[2] Memorial Day: feriado nos EUA comemorado na última 2ª feira de Maio (25/Maio/2009).
[3] Glenn Beck: um apresentador reaccionário da TV estado-unidense, com grande audiência.
[4] Lloyd Blankfein: Actual CEO e presidente do banco Goldman Sachs.
[*] Autor do romance World Made by Hand , acerca do futuro pós petróleo
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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