sexta-feira, abril 24, 2009

Europa: a dignidade da submissão

Finalmente as potências europeias fizeram na passada segunda-feira o gesto enérgico, digno e civilizado que todos estávamos à espera. Como esquerdistas justiceiros, sem temor pelas consequências, pondo a sua honra e a sua consciência acima dos protocolos, afirmando publicamente o seu apoio insubornável aos elevados valores encarnados na nossa história, os representantes da UE não duvidaram em boicotar uma reunião internacional na qual a infâmia pretendia alçar a voz. Levantaram-se dos seus assentos e desfilaram um por um, de cabeça erguida, estatura desafiante, para a saída.

A Europa tinha aguentado já demasiado. Tinha tolerado – por exemplo – a invasão do Panamá, a dupla destruição do Iraque, o bombardeamento do Sudão, os bombardeamentos sobre o Paquistão, o linchamento do Líbano, os assassinatos de Uribe na Colômbia, as prisões secretas da CIA, etc. porque eram realmente destrutivas. Tinha tolerado também as declarações de Bush sobre o Iraque e os falsos testemunhos sobre os Balcãs, como tem tolerado as calunias contra Chávez, Fidel ou Evo Morales, porque eram mentira. Mas tudo tem um limite e se alguém diz a verdade, e sem matar ninguém, eis por fim a ocasião de protestar!

Contra a verdade, «não é possível nenhum compromisso», afirmou Bernard Kouchner. Assim que se pronunciasse a verdade, «tínhamos o sinal de abandonar a sala», assegurou Javier Garrigues. Se se dissesse a verdade, «não íamos tolerar nenhum abuso», tinha declarado a presidência checa da UE. Como comparecesse a verdade, tínhamos a obrigação de silenciar «esse discurso de ódio», disse Sarkozy. Todo aquele que diga a verdade, apoiou o secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, torna-se culpado de «acusar, dividir e incitar».

Se não se mata e não se mente, os europeus indignam-se. É natural. A verdade é mais “incendiaria” que os incêndios; é mais “extremista” que o fósforo branco; é mais “violenta” e “provocativa” que a mutilação de uma criança. Ahmadinejad, presidente do Irão, subiu à tribuna e disse serenamente: “Israel é racista”. Os representantes europeus caíram-lhe em cima: “violento, radical, anti-semita”. A estratégia legitimadora de Israel, simples e brutal, inscreve-se na mais pura tradição europeia: matar, esfolar, massacrar com elegância e sem espaventos e escandalizar-se depois perante a denúncia, que põe fim a toda a possibilidade de diálogo. Dizer que as críticas de Ahmadinejad não são construtivas é o mesmo que dizer que as bombas de Israel não são destrutivas. Entre dois construtivos bombardeamentos, as destrutivas denúncias de Ahmedinejad destroem tudo. E a Europa, muito justamente, indigna-se não pelo racismo de Israel, que acaba de produzir 1400 mortos em Gaza, mas pelas denúncias de Ahmedinejad, esse racista que acusa de racismo os assassinos de racistas palestinianos. Israel não é racista: só mata racistas que, de outro modo, poderiam cometer o crime de denunciar os seus crimes ou, pelo menos, de odiar os israelitas.

Não insistirei na verdadeira que é a verdade que o presidente do Irão anunciou na segunda-feira na Conferência sobre Racismo da ONU; hoje mesmo Pascual Serrano explica-o muito bem neste mesmo meio [1]. O que é preocupante é que essa verdade tenha que ser escutada precisamente dos lábios de um governante que nos é tão afim como Sarkozy e que nos entusiasma tanto como Berlusconi; e que, em definitivo, é tão de esquerda como Merkel ou Klaus; um homem que contribui decisivamente para a ocupação do Iraque enquanto utiliza a retórica anti-imperialista a favor de um projecto social e culturalmente tão emancipador como pode ser o do PP ou o do Vaticano. Nada pode convir mais a Israel que deixar a verdade nessas mãos; nenhum outro porta-voz legitima melhor a “dignidade” europeia aos olhos de uma opinião pública manipulada e ignorante. Ter-se-iam mostrado tão orgulhosamente moralizantes os nossos embaixadores se na tribuna tivesse estado – por exemplo – o pai de Amal e Suad Abed Rabbo, de 2 e 7 anos, assassinadas diante de sua casa por um tanque israelita? Ou a mãe de Lina Hassan, de 10 anos, atingida a tiro junto à escola da ONU em Jabaliya? Ou Mahmud Abdel Rahim, de 20 anos, que perdeu os seus pais e três irmãos num bombardeamento? Teria gostado de ver os representantes da UE desprezar cara a cara – como realmente fizeram – toda essa dor de que são parcialmente responsáveis.

Em todo o caso, que a denúncia proceda de um lugar incómodo não é algo que haja que censurar a Ahmedinejad, que pelo menos diz a verdade, mas aos nossos próprios governantes europeus, tão parecidos em tudo o resto ao seu homólogo iraniano, mas que poderiam, se dissessem a verdade e agissem em consequência, acabar com a agonia do povo palestiniano e com a ignominia do Estado de Israel. Porque o pior, o mais obsceno, o mais vergonhoso é que o “gesto digno, enérgico e civilizado” dos nossos representantes europeus não responde nem a profundas convicções ideológicas nem a baixos interesses económicos; tão-pouco ao saudável sadismo da nossa tradição colonial; nem ao honrado racismo bem instalado nos nossos instintos; responde somente à mais pura, covarde e humilhante submissão. Nunca ninguém levantou tanto a cabeça para lamber umas botas.

[1] Pascual Serrano, Boicotar a denúncia do racismo, Rebelión, 22/04/2009.

http://infoalternativa.org/spip.php?article805

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