Pretendo desmontar, um a um, os pressupostos da política educativa que tem sido seguida em Portugal desde há várias décadas e que têm sido aceites como indiscutíveis e certos porque “naturais” e “normais”.
Recapitulemos, então, esses pressupostos:
1º Existe um saber instituído que é, naturalmente, anterior à entrada do aluno na escola ou no ano lectivo que frequenta.
2º O aluno é uma caixa vazia no que respeita a esse saber instituído pelo que lhe deve ser inculcado de fora e de modo que ele o aprenda.
3º Sem a ajuda de um especialista ou professor, o aluno não consegue, por si, aprender o saber: precisa de um professor, especialista na matéria, para o ensinar.
4º O professor tem que conhecer também, para além dos saberes científicos que domina, um conjunto de técnicas (pedagógicas) ou maneiras adequadas à transmissão desses saberes.
5º Se o professor aplicar essas técnicas de maneira adequada, o aluno aprende.
6º Se o aluno não aprende, o professor não soube ensinar.
7º Se não sabe ensinar, ele tem que aprender a ensinar, tem que ser formado para isso.
8º Para garantir a aplicação e a competência no uso das técnicas pedagógicas, o professor tem que ser dirigido, vigiado e avaliado.
9º Para assegurar uma direcção eficiente das funções do professor, é necessário um conjunto muito vasto de regulamentações e recomendações.
10º Só uma equipa de sábios pode superiormente pensar e determinar as regulamentações do trabalho dos professores: as várias estruturas do Ministério da Educação.
Seguiremos a mesma ordem para discutir cada um destes pressupostos e mostrar que são não só discutíveis, muitas vezes falsos, e outras vezes ilusórios, enganadores.
1º Não é verdade que o saber seja anterior, no tempo, à entrada do aluno na escola: a experiência tem-nos mostrado que aquilo que julgávamos saber com verdade, afinal não é como se julgava. Todos os dias se anunciam novas descobertas científicas muitas das quais contrariam o “saber instituído”. É preciso que se encare o saber como uma construção contínua sujeita a alterações e reestruturações e, por vezes, a reconstruções profundas que deitam abaixo aquilo que se julgava solidamente construído. Portanto, o aluno, quando entra na escola ou no ano lectivo, deve ser convidado para a obra da construção do saber, para dar o seu contributo mesmo que seja para destruir, com novas ideias, aquilo que laboriosamente outros julgavam certo.
2º O aluno não é uma caixa vazia quando entra na escola ou no ano lectivo. Ele traz da família e do meio social, assim como da sua sociedade, um conjunto de ideias comuns que fazem parte da ideologia e cultura de uma determinada época e sociedade: acredita no progresso; que o homem é radicalmente diferente dos animais; que o homem é um animal racional; que as plantas ou a natureza não sofrem; que os animais e plantas não têm racionalidade, inteligência ou alma; que o universo é infinito; que Deus é eterno, etc., etc. Algumas destas ideias constituem um obstáculo ao progresso no conhecimento enquanto outras podem suscitar dúvidas e estimulá-lo. Por outro lado, nenhuma criança ou adolescente é um receptáculo passivo de conhecimentos. Ele pretende saber porquê, como, e porque não pode ser de outra maneira ou, se fosse de outro modo, como seria. Ele constrói o seu saber de forma pessoal; coloca algo de si no modo como aprende e conhece.
3º Não é verdade. Basta pensar naquele matemático cujo pai o impediu de se dedicar à matemática e ele, com apenas régua e esquadro e algo onde pôde desenhar, demonstrou um conjunto de teoremas geométricos, sem os ter conhecido antes. Se a criança é curiosa – e todas as crianças são curiosas: a escola heterónoma é que lhes vai destruindo pouco a pouco a curiosidade e a motivação para o aprender – e se dispõe de meios onde possa satisfazer a sua curiosidade intelectual, ela, por si, descobre as respostas que procura e pode ir até mais longe que as que lhe são dadas se estas não podem satisfazê-la.
4º Ao contrário do que se pensa, o professor não ensina nada a ninguém. Sabemos isso desde Sócrates. O professor pode ajudar, dar informações, pistas, bibliografia, e orientar a criança curiosa na busca daquilo que ela pretende: mas é ela que tem que descobrir, por si e em si. O que conta não é a técnica, como se ela fosse um autómato ou objecto passivo que pode ser manipulado a bel-prazer do professor; o que está em causa é a comunicação em duplo sentido, dialogante, inter-actuante; comunicação simultaneamente linguística e sentimental e emocional, quer dizer, humana. E a comunicação humana é tão rica e variada que dificilmente se deixa manipular por técnicas.
5º Nada mais falso. Os professores sabem por experiência própria que, se a criança ou adolescente não tem qualquer motivação pelo saber ou não tem qualquer curiosidade intelectual, por motivos que não interessa agora analisar, por muito versados que sejam na “diversificação das técnicas pedagógicas”, nada resulta. E porquê? Porque na maior parte das vezes, o ensino tradicional heterónomo e controlado, produz na criança e adolescente aversão à escola.
6º Também é falso. O que sucede é que a escola está organizada de modo que o discurso do professor é quase sempre impessoal, destinado a todos, mas a ninguém em particular: o professor tem que cumprir um programa que lhe é imposto a si e ao aluno; o professor tem que dar as aulas, simultaneamente, a quase trinta alunos e avaliar, cumprindo escrupulosamente os regulamentos, as circulares, os decretos-lei, os decretos-regulamentares, as circulares e as recomendações… Tem horário rígido e n turmas de x alunos todos distintos. Este modo formal de ensinar, imposto ao professor, torna o ensino heterónomo; quer dizer, o saber é imposto ou proposto de fora ao aluno e isto provoca-lhe desinteresse pelo saber e, muitas vezes, aversão à escola. Por muito brilhante e sedutor que seja o discurso do professor, por mais variados que sejam os recursos e as técnicas, o aluno vê isso como uma maçada que se traduz numa total indiferença e insucesso .
7º Há alguma verdade neste pressuposto. Todavia não é o conhecimento e a habilidade pedagógicas que vão resolver o problema pelas razões já apresentadas. Aliás, os cursos de formação em Pedagogia, em técnicas de motivação e noutras estratégias e técnicas pedagógicas não têm surtido qualquer efeito visível no ensino português. Muitos colegas professores acharam tais cursos uma pura perda de tempo porque “não aprenderam nada de novo” ou aquilo que aprenderam “não lhes serve de nada” ou porque a orgânica formal e burocrática da escola os impede de aplicar ou porque a sobrecarga de trabalho burocrático, de turmas e de alunos por turma lhes impossibilita fazer a experiência. Das técnicas experimentadas em situação ideal de laboratório até ao exercício prático na sala de aula numa escola concreta vai uma distância abismal.
8º Este pressuposto parte do princípio de que o professor é comparável a um trabalhador do sector produtivo e, por isso, se situa como que numa linha de produção taylorista em que tem que desenvolver uma sequência precisa de movimentos e técnicas no sentido de transformar o objecto em fabricação. É evidente que este pressuposto está errado. Não só os alunos não são objectos inertes, mas sujeitos activos com personalidade e vontade próprias, mas também o acto de ajudar alguém a aprender, ainda por cima com pessoas distintas, não pode ser formatado naquilo que se convencionou ser uma sequência de «boas práticas», nem medido ou quantificado como sucede no fim de uma linha de produção. Ensinar, ou melhor, ajudar alguém a aprender, não é o mesmo que “encher chouriços” ou “coser sapatos”. Por outro lado, quando alguém faz aquilo de que gosta e tem prazer na ajuda da descoberta e da aprendizagem, não precisa de ser vigiado para produzir um bom trabalho desde que os destinatários tenham interesse em aprender e saber cada vez mais…
9º Sendo o ensino e a aprendizagem um processo auto-organizativo , ele não deve ser dirigido e super-regulamentado de fora: tem que existir um grande espaço de autonomia e liberdade para a criatividade e auto-organização. Se tudo está regulamentado, se o professor estiver enjaulado num feixe de directivas, se qualquer passo, que tiver de dar, estiver comandado por uma espécie de controlo remoto, não há criatividade, inovação e imaginação. E sem criatividade e imaginação, o prazer de ensinar a aprender morre e com ele morre também a aprendizagem. O professor que incorrer numa infracção ao regulamento ou à norma, tem um processo disciplinar. Imagine-se que um professor, em vez de dar a sua aula clássica, atende os alunos um a um, para falar pessoalmente com eles, procurando saber quais as suas paixões e necessidades intelectuais, etc., para os orientar melhor na realização de um trabalho de pesquisa, deixando os restantes no recreio enquanto esperam: seria censurado/penalizado por não estar a “dar aulas à turma toda”.
10º O maior problema da educação, no nosso país, reside sobretudo na própria máquina burocrática do ministério, composta por um conjunto de sábios que se auto-convenceram de que a educação não pode funcionar sem eles… senão seguindo, escrupulosamente, todas as directivas que, dia a dia, fazem sair dos vários departamentos ministeriais e que as escolas e os professores terão de cumprir sequencialmente como se fossem controlados remotamente, como autómatos acéfalos, pois, se assim não fosse, segundo eles, os professores não saberiam como fazer o seu trabalho. Uma mudança de paradigma na educação – uma verdadeira revolução científica e paradigmática neste sector – passa necessariamente pelo desmantelamento do “ministério da educação” e pela saída dos seus sábios. Estes devem regressar à escola e procurar pôr em prática as directivas que eles próprios conceberam para provar que o paradigma que sustentam “não tem anomalias” e funciona paradigmaticamente.
1 - “Cette contreproductivité est celle du système éducatif qui détruit la curiosité, la volonté et la capacité d’apprendre par soi-même”... Jean-Pierre Dupuy e Jean Robert, La trahison de l’opulence, PUF, Paris, 1976, p. 63.
2- Clara Costa Oliveira, Educação como processo auto-organizativo – Fundamentos teóricos para uma educação permanente e comunitária, Ed. Instituto Piaget, Lisboa, 1999, pp. 30/1.
Zeferino Lopes, Prof de Filos. na Escola Sec. de Penafiel, em 28 de Abril de 2009.
Sem comentários:
Enviar um comentário