quarta-feira, maio 20, 2009

Alfonso Sastre ilegalizado

É uma história conhecida: em 1630, em Milão, um suspeito, denunciado por um cidadão honrado, é detido e torturado e, depois de negar inicialmente a acusação, acaba por confessar o seu delito. Sob tortura, denúncia também o seu barbeiro, cúmplice da atrocidade, e este por sua vez denuncia outros homens, pondo a descoberto toda uma cadeia de monstruosos malfeitores que começa, ou acaba, em num cavalheiro de nome Padilla, chefe da campanha de terror. Condenados e executados, sobre as ruínas da casa do barbeiro alçou-se uma coluna admonitória que recordava a infame acção dos réus e advertia eternamente os malvados sobre as consequências de semelhante tropelia. Que tinham feito? Eram untori, isto é, “untadores” sinistros que tinham propagado a peste pela cidade depositando nas paredes e nos objectos a substância contaminante que transmitia a doença. Só em 1778, sob o impulso luminoso da Ilustração, a coluna foi derrubada, considerando a nova época – a de Montesquieu, Verri e Beccaria – que a infâmia não residia nos condenados, mas nos magistrados que os julgaram e nos cidadãos amedrontados e ignorantes que ajudaram a converter a loucura, a superstição e o absolutismo num procedimento natural.

Esta história real do Antigo Regime, recolhida em 1840 pelo italiano Alessandro Manzoni, é infelizmente muito actual. Segundo a Advocacia Geral do Estado – isto é, segundo o Governo do reino de Espanha – Alfonso Sastre, o dramaturgo vivo mais importante do mundo, é um untore e só o seu nome (enquanto ele trabalha nas suas obras de teatro fechado na sua sala) é capaz de contaminar tudo o que confina com ele, de Hondarribia a Terra do Fogo. Contaminado pelas suas “conexões pessoais” do passado, a sua presença como cabeça de lista na candidatura de Iniciativa Internacionalista é a tal ponto contaminante que deve ser imediatamente privado dos seus direitos cidadãos juntamente com os seus colegas de grupo e juntamente com os seus potenciais votantes. Neste galope de regresso à pré-modernidade, a lógica é já – infelizmente – conhecida: não é que apresentar-se a umas eleições europeias seja um delito; não é que não lhe seja permitido apresentar-se por ter cometido um delito: é que a sua própria existência é delitiva. “Intenções”, “analogias”, “concomitâncias”, toda a subtil obra do Direito, levantada pacientemente durante séculos, sucumbe entre aplausos a esta atmosfera primitiva e sacrificial de miasmas escuros transmitidos, como a gripe porcina, com ou sem vontade, numa onda expansiva ininterrupta. As noções de doença e pecado –mortais as duas – substituem a de delito, prova, presunção de inocência, responsabilidade individual. De até que ponto “a defesa da democracia” – com Savater e Rosa Díez à cabeça – deslizou já no mundo medieval, obscurantista, pré-histórico, do farmakon e da magia negra, dá boa prova o facto de que, se quisesse, Alfonso Sastre não poderia mudar de opinião: é só o resultado das suas “conexões pessoais” e o começo, por sua vez, de conexões potencialmente tão amplas que a partir do seu nome, no delírio anti-jurídico das analogias e das concomitâncias, se poderia impugnar ou ilegalizar qualquer lista na qual houvesse algum leitor de Esquadra para a morte.

A conjectura de que o Batasuna ia pedir o voto para II e a presença nas suas listas de um ex-candidato da ANV, uma força então legal mas ilegalizada a posteriori, activou a enésima impugnação de uma força eleitoral que, com quase toda a segurança, não poderá concorrer no próximo dia 7 de Junho às eleições europeias. Em 1630 faziam-se as coisas assim; em 2009, no reino de Espanha, também. Em 1630, os processos abertos contra os untori faziam parte da lógica pré-ilustrada do Antigo Regime; em 2009, os processos abertos contra os untori querem-se fazer passar por normalidade democrática e de Direito. Gente inteligente, gente sisuda, gente honrada, respeitada e influente, gente fora de toda a suspeita, gente rica e gente poderosa – como no Milão da peste – terão algum dia que prestar contas perante os cidadãos por esta dupla malfeitoria: a de restabelecer o Antigo Regime e a de fazê-lo, ademais, nomeando o direito e a Democracia.

Assim com estão as coisas, sugiro – e faço-o a sério – que o Batasuna, fonte de todas os miasmas, poderosíssima varinha de contagiar infâmia, convoque uma conferência de imprensa e peça publicamente o voto para o PP e/ou para o PSOE. Ficarão manchados os nossos dois principais partidos? Pedir-se-á a sua ilegalização? Não, claro, mas dessa maneira pelo menos ficará claro que, desencadeada fora do direito, esta lógica medieval é a tal ponto medieval – e está tão fora do direito – que nem sequer é lógica: é puro exercício de soberania religiosa ou, o que é o mesmo, arbitrariedade paranóica de um Santo Oficio na sua luta contra o Mal.

Porque o que já ficou claro, em qualquer caso, é que o obscurantismo, a manipulação, o desprezo pelas regras do jogo e a injustiça são infinitamente mais contagiosos que a peste, e bem mais, claro, que a consciência da democracia e a liberdade.

http://infoalternativa.org/spip.php?article892

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