Em tempos de crise económica, pais vendem o portátil dado pelo Governo em feiras e nas lojas de penhores.
No chão ou em cima de pequenas bancas improvisadas, entre amontoados de roupa ou ao lado de volumes de tabaco de contrabando, pilhas de óculos escuros e telemóveis, o computador 'Magalhães' já é presença assídua na Feira da Ladra, em Lisboa.
Na banca de Sérgio, o pequeno portátil azul é a principal atracção. Ocupa lugar de destaque e não passa despercebido a ninguém. Entre os curiosos que param por ali, não há quem não pergunte o preço do 'Magalhães'. "Vale muito. Para o Governo do engenheiro Sócrates, então, é uma riqueza. Aqui, vendo-o por €140", responde o feirante em tom assertivo, sem deixar margem para regatear.
Para conseguir os melhores negócios e comprar a bom preço os artigos que depois vai revender, Sérgio chega todos os sábados à Feira da Ladra horas antes de o sol nascer. Ainda não eram 6h quando, no fim-de-semana passado, pagou a um rapaz €80 pelo 'Magalhães' que agora negoceia por mais €60. Não sabe onde o jovem o arranjou. Sabe apenas que o computador "é daqueles mesmo originais, que o Ministério da Educação dá aos miúdos". E, para que não restem dúvidas, liga o aparelho, no meio do reboliço da feira, só para o comprovar.
No ecrã surge de imediato o símbolo do e-escolinha, o programa lançado pelo Governo para a distribuição de portáteis a crianças do primeiro ciclo. E lá está também o software da Caixa Mágica, ainda com os erros ortográficos da polémica.
Mas na mais popular feira de bens usados de Lisboa, assim como na Feira do Relógio ou em plena Rua Morais Soares, também na capital, este não é o único computador dado pelo Governo à espera de comprador. E nem a ASAE nem a polícia podem intervir, a menos que o portátil seja roubado. O que não é o caso na grande maioria das vezes. Nos últimos meses, a PSP só recebeu cinco queixas de furto de 'Magalhães', a nível nacional.
'Magalhães' no 'prego'
Em tempo de crise, são os próprios pais que optam por se desfazer do computador dos filhos para conseguírem algum dinheiro. E legalmente não há nada que os impeça. A partir do momento em que o portátil é entregue pela escola, passa a ser propriedade plena dos encarregados de educação.
"Todos os sábados há por aí muitos 'Magalhães' à venda, ainda com as caixas originais e tudo. As pessoas pegam nos portáteis dos filhos e vêm cá para os vender, normalmente por 120 ou 140 euros", conta André Teles, de 19 anos, que ganha a vida a vender na Feira da Ladra.
O negócio até pode ser bastante rentável. Das 400 mil crianças inscritas para receber o computador, 100 mil não tiveram de pagar nada por serem beneficiárias do escalão mais elevado do abono de família. Entre as restantes, as famílias desembolsaram, no máximo, 50 euros, quase um terço do preço pedido nas feiras ou nas lojas de compra e venda de artigos usados, onde também não é difícil encontrar os portáteis, apesar de o Ministério da Educação assegurar não ter conhecimento de casos.
"Vêm cá muitos pais tentar vender os 'Magalhães', assim como os portáteis do e-escolas, dados aos miúdos mais velhos, do 2º e 3º ciclos e do secundário. Compramo-los a cerca de 150 euros e vendemo-los pelo dobro", conta um funcionário da loja CashConverters de Alfragide.
Ao contrário do que acontece com o 'Magalhães', no caso dos computadores distribuídos aos jovens a entrega do equipamento obriga a um contrato de fidelização com uma das três operadoras móveis devido ao acesso à Internet de banda larga. Ainda assim, nada que tenha impedido muitos pais de os vender.
Para ganhar algum dinheiro também há famílias com dificuldades económicas que optam por penhorar os portáteis. Vão pô-los no 'prego' por valores que variam entre os 100 e os 150 euros e acabam por recuperá-los ao fim de um mês, pagando mais 20% do que receberam.
"Os pais vêm cá pôr o 'Magalhães' e os outros computadores do e-escolas para conseguirem pagar a renda ou as compras do supermercado. Normalmente, é para conseguírem esticar o dinheiro até ao fim do mês e responder a alguma uma aflição do momento", relata ao Expresso uma funcionária da CashAmadora.
Garantia limitada
Portáteis estragados por arranjar
Depois da euforia inicial, o 'Magalhães' foi posto a um canto na casa de algumas famílias, já que os pais não têm dinheiro para pagar o arranjo de avarias provocadas por má utilização. "As crianças estragam o ecrã, põem mal as fichas e não os sabem preservar. A garantia não cobre esses arranjos e as famílias não têm capacidade económica para os mandar arranjar. Só aqui já se estragaram cinco e alguns só têm um mês", afirma Manuela Lima, coordenadora da escola do 1º ciclo da Afurada, no Porto. Ricardo Fernandes, responsável da EB1 Bairro dos Pescadores, em Matosinhos, corrobora: "Alguns já estão meio desfeitos e já não serão arranjados", conta. Segundo a JP Sá Couto, empresa fabricante, a taxa de avarias reportadas situa-se em 1,4%. No entanto, estragos como monitores partidos ou teclas retiradas têm de ser pagos, ainda que a empresa garanta cobrar preços abaixo do mercado.
Números
320 mil 'Magalhães' já foram distribuídos. Cerca de 80 mil crianças continuam à espera
50 euros é o valor máximo que as famílias pagam pelo portátil. No entanto, cerca de 100 mil crianças não pagaram nada
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