terça-feira, maio 26, 2009

E. Tousain e D. Millet - Porque cresce a fome no século XXI?



Como explicar que a fome ainda exista no século XXI?
Uma em cada sete pessoas no planeta está permanentemente com fome.


As causas são bem conhecidas: uma profunda injustiça na distribuição da riqueza e a monopolização da terra por uma pequena minoria de grandes latifundiários. Segundo a Food and Agriculture Organization (FAO), 963 milhões de pessoas sofreram de fome em 2008. Paradoxalmente, estas pessoas vivem sobretudo nas zonas rurais. Em geral, trata-se de camponeses que não possuem terra, ou não possuem suficiente terra ou não dispõem de meios para a cultivarem de forma rentável.


O que provocou a crise alimentar em 2007-2008?


É importante realçar que, entre 2007 e 2008, o número de pessoas com fome aumentou em 140 milhões. Este aumento deveu-se à explosão dos preços dos alimentos. Em muitos países, os preços de venda a retalho dos alimentos cresceu 50% ou mesmo mais.

Porquê este aumento? Para responder a esta questão, é importante compreender o que se passou nos últimos três anos. Só então é possível delinear políticas alternativas adequadas.

Por um lado, as autoridades públicas no Hemisfério Norte aumentaram os subsídios para os agro-combustíveis (ardilosamente denominados bio-combustíveis, já que nada têm de orgânico). Subitamente, tornou-se rentável substituir culturas de subsistência por culturas de oleaginosas ou desviar parte da cultura de grãos (milho, trigo, etc) para a produção de agro-combustíveis.

Por outro lado, após o rebentamento da bolha imobiliária nos Estados Unidos da América (EUA), com repercussões no resto do mundo, os investimentos mais importantes (fundos de pensões, investimentos bancários, fundos livres -hedge funds - etc.) desviaram a sua atenção para a especulação em mercados de futuros onde se negociavam contratos de preços dos alimentos (existem três mercados de futuros principais nos EUA: Chicago, Cidade do Kansas e Miniápoles). É, por isso, urgente que os cidadãos tomem iniciativas conducentes a proibir a especulação dos preços dos alimentos. Apesar de a especulação ter atingido o seu auge em 2008, iniciando o declínio em meados desse ano, os preços de retalho não seguiram essa tendência. A grande maioria da população mundial dispõe de rendimentos muito baixos e continua afectada pelas consequências dramáticas do crescimento dos preços dos alimentos verificado entre 2007 e 2008.


As dezenas de milhões de excedentes anunciados para 2009 e 2010 em todo o mundo tornarão a situação ainda mais grave. Em Abril de 2009, a FAO informou o G8 que o número de pessoas com fome crónica se previa que viesse a aumentar entre 75 a 100 milhões no ano corrente, conduzindo a um total superior a mil milhões. Para contrariar esta tendência, era necessário que as autoridades públicas mantivessem os preços sob controlo.


O aumento da fome no mundo não se deve, até ao momento, a alterações climáticas. Mas este factor trará consequências pesadas para o futuro em certas regiões do mundo, especialmente nas regiões tropical e sub-tropical. A agricultura nas zonas temperadas será menos afectada. A solução baseia-se na redução drástica das emissões que contribuem para o efeito de estufa (o IPPC recomenda uma redução de 80% destas emissões para os países industrializados e de 20% para os restantes).


É possível erradicar a fome?


Erradicar a fome é inteiramente possível. As soluções para se alcançar esta meta residem na soberania alimentar e na reforma agrária. Ou seja, dar prioridade à produção local na alimentação das populações e controlar as importações e as exportações.

A soberania alimentar tem de constituir uma preocupação central nas decisões políticas dos governos. Tem de se privilegiar as quintas familiares, usando técnicas concebidas para a produção de alimentos orgânicos. Além disso, assim se conseguiria produtos de boa qualidade: nada de transgénicos, pesticidas, herbicidas ou fertilizantes químicos. Para tanto, 2 mil milhões de agricultores devem dispor de terra suficiente para nela trabalhar, trabalhando em benefício próprio em vez de produzirem cereais para os grandes latifúndios, multinacionais dos agro-negócios ou os grandes distribuidores. Por meio de incentivos públicos, estas pessoas deveriam dispor dos meios necessários para trabalharem na sua terra sem a esgotar.

É necessária uma reforma agrária. Estão desesperadamente carentes dessa reforma o Brasil, a Bolívia, o Paraguai, o Peru a Ásia e alguns países de África. Tal reforma agrária promoveria a redistribuição das terras, a proibição dos latifúndios e a canalização de meios de apoio público para os agricultores.

Deve notar-se que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, sobretudo, o Banco Mundial são largamente responsáveis pela actual crise alimentar, pois recomendaram aos governos do hemisfério Sul que desactivassem os seus grandes silos de cereais outrora usados para apoiarem o mercado doméstico em caso de escassez ou subida acentuada e repentina dos preços. O Banco Mundial e o FMI encorajaram os governos do Sul a fecharem as caixas de crédito agrícola estatal e a desviar esses meios financeiros para benefício de associações de grandes proprietários (muitas vezes também comerciantes) ou para bancos privados, praticando juros exorbitantes. Disto resultou o grande endividamento de muitos agricultores na Índia, na Nicarágua, no México, no Egipto e em muitos países da África sub-sariana. Segundo relatórios oficiais, o alto nível de endividamento constituiu a principal causa do suicídio de 150.000 agricultores verificado na Índia na década passada. Este foi o país em que o Banco Mundial conseguiu persuadir as autoridades a suprimir as agências de crédito público aos agricultores. E há mais: Nos últimos 4 anos, o Banco Mundial e o FMI também coagiram os países tropicais a reduzir a sua produção de trigo, arroz e milho e substituí-la por produtos de exportação (cacau, café, chá, bananas, amendoins, flores, etc).

Finalmente, para coroar os seus esforços a favor dos agro-negociantes e dos países grandes exportadores (começando pelos EUA, Canadá e Europa Ocidental), também persuadiram os governos a abrir as suas fronteiras à entrada de bens alimentares altamente subsidiados pelos governos do Norte. Isto conduziu muitos produtores do Sul à ruína e a uma severa redução da produção de cereais de subsistência autónoma.

Em resumo, é necessário proteger a segurança alimentar e empreender a reforma agrária. A produção de agro-combustíveis deve ser abandonada e os subsídios estatais para quem os produz eliminados. É necessário também recompor o sistema de reservas alimentares no Sul (especialmente de cereais como trigo, arroz, milho...), restaurar as agências de crédito agrícola estatais e regular os preços dos bens alimentares. O Estado deve também garantir preços de aquisição da produção aos pequenos agricultores capazes de promover a melhoria das suas condições de vida. O Estado deve alargar a rede de serviços públicos às zonas rurais (saúde, educação, comunicações, cultura, embriões de bancos estatais, etc). As autoridades públicas são perfeitamente capazes de garantir quer os preços subsidiados para na produção quer os preços de retalho no consumo suficientemente elevados para proporcionar aos produtores ganhos apropriados.


Não será esta luta contra a fome parte de uma luta muito mais geral?


Não é de esperar resultados sérios neste combate contra a fome sem que se considerem as causas fundamentais que conduziram à situação actual. A dívida é uma destas causas. A publicidade e fanfarra em torno desta questão, especialmente nas cimeiras dos últimos anos do G8 e do G20, foi incapaz de levantar o véu que cobre este persistente mistério. A crise actual está a degradar ainda mais a situação dos países pouco desenvolvidos, já penalizados pelos custos da dívida, sendo de prever que novas dívidas venham a ser contraídas a Sul. A dívida teve como consequência que os países do Sul, tantas vezes ricos em recursos naturais e humanos, se empobrecessem. A dívida é a pilhagem organizada, a que tem que se pôr cobro urgentemente.

De facto, a mecânica infernal da dívida constitui o obstáculo mais importante para que as necessidades básicas das pessoas sejam satisfeitas, incluindo o direito a uma alimentação decente. Sem dúvida, a satisfação das necessidades básicas deve ser colocada acima de quaisquer outras considerações, sejam elas geo-estratégicas ou financeiras. De um ponto de vista moral, os direitos dos credores, pessoas com meios privados ou especuladores pesam bem pouco se comparadas aos direitos fundamentais de seis mil milhões de cidadãos esmagados pela máquina implacável da dívida.

É imoral pedir a países empobrecidos pela crise global e pela qual não foram responsáveis, que afectem uma parte significativa dos seus recursos para recompensar credores ricos (sejam do Norte ou do Sul), em vez de os usarem para as suas necessidades fundamentais. O carácter imoral da dívida também resulta de, muitas vezes, elas terem sido contraídas pela mão de regimes não-democráticos, que não usaram o dinheiro que foi entregue no interesse da sua própria população tendo, em vez disso, desviado grandes somas com apoio tácito ou mesmo com a participação activa dos estados do Norte, do Banco Mundial ou do FMI. Os credores dos países industrializados mais fortes pagaram subornos, certos da cobertura que tais regimes davam à corrupção. Não estão em condições de exigir dos povos desses países qualquer pagamento de retorno que tenha tido origem nas suas práticas imorais e ilegais.

Para resumir, a dívida é uma das formas pelas quais se instala de novo o colonialismo em detrimento do povo. É uma inovação no rol das muitas injustiças históricas já perpetradas pelos países ricos: escravidão, extremínio de populações indígenas, grilhões coloniais, pilhagem de matérias-primas, destruição da biodiversidade e sonegação do know-how dos agricultores (por meio das patentes de produtos agrícolas do Sul, como o arroz Basmati da Índia, para proveito da corporações multinacionais da agricultura no Norte), pilhagem de bens culturais, fuga de cérebros, etc. Em nome da Justiça, é tempo de substituir a lógica da sujeição pela lógica da redistribuição da riqueza.

O G8, o FMI, o Banco Mundial e o Clube de Paris impõem as suas próprias verdades, a sua própria justiça, na qual são simultaneamente juiz e parte interessada. Confrontados pela crise, o G20 pegou no bastão e procura recolocar o desacreditado FMI no centro do seu campo de acção política e económica. Temos que pôr cobro a esta injustiça que aproveita aos opressores, sejam do Norte ou do Sul.
Eric Toussaint e Damien Millet, Why is There Rampant Famine in the 21st Century?

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