sexta-feira, maio 01, 2009

Guantánamo enquanto sistema

1. O SISTEMA GUANTÁNAMO
Guantánamo é indiscutivelmente a referência mais sombria dos “anos Bush”, universalmente repudiada hoje. Mas, por muito odiosa que seja a realidade que o nome encobre, Guantánamo é apenas uma peça, a mais brilhante, de uma vasta e complexa constelação em que os “buracos negros” são mais extensos do que os pontos expostos à luz.
Guantánamo pertence a um sistema de prisões e centros de investigação montado a nível mundial pelos EUA, na era Bush, e que compreende basicamente três componentes: as prisões geridas pelos militares (Guantánamo, Bagram e outras prisões localizadas no Afeganistão, e as prisões situadas no Iraque, como Abu Ghraib, já entregues às “autoridades” iraquianas); os centros de detenção da CIA, sobre os quais muito pouco, quase nada, se sabe, mas que se encontram possivelmente instalados em Diego Garcia, em navios de guerra, e noutros locais desconhecidos, activados ou desactivados, como terá acontecido com as prisões localizadas na Polónia e na Roménia; e ainda uma terceira componente que consiste essencialmente na entrega controlada pela CIA a países “amigos” (Marrocos, Jordânia, Egipto) ou até “inimigos” (Síria) de prisioneiros para serem interrogados pelos serviços secretos desses países, sendo eles posteriormente “devolvidos”, ou não, conforme as conveniências, às autoridades americanas (CIA).
O que caracteriza fundamentalmente este sistema é que está direccionado para a recolha de informações dos prisioneiros, sem quaisquer entraves ou obstáculos jurídicos, antes submetida ao único objectivo de obter informações “úteis”, não estando portanto excluídas quaisquer “técnicas” que se mostrem “necessárias”, ainda que contrárias ao direito internacional e ao próprio direito interno dos EUA.
O estatuto dos prisioneiros e as regras de interrogatório são ditados pelo presidente dos EUA, enquanto comandante máximo da “guerra ao terrorismo” e nenhuma entidade interna ou internacional lhe pode barrar o caminho.
Foram estes os princípios básicos que guiaram a acção dos EUA no tratamento dos prisioneiros durante o consulado de Bush, princípios esses expostos e teorizados em diversos documentos e declarações oficiais.
Registe-se ainda que logo após o 11 de Setembro foram detidos em território dos EUA centenas de indivíduos, sob a suspeita de participação ou colaboração com actos terroristas, relativamente aos quais não foi formulada qualquer acusação formal. Presume-se que foram libertados ou expulsos (os estrangeiros) por falta de provas. Refira-se, porém, o caso de José Padilla, um cidadão norte-americano preso em Maio de 2002, que foi considerado “combatente inimigo” e entregue à justiça militar, onde foi acusado, não havendo ainda decisão final; e o de Zacarias Moussaoui, um francês preso em Agosto de 2001, que acabou condenado nos tribunais comuns a prisão perpétua em Maio de 2006, depois de ter confessado e “reivindicado” o seu envolvimento na conspiração do 11 de Setembro, uma confissão que deu lugar às maiores dúvidas por parte da defesa e das organizações de direitos humanos.
2. O CONCEITO DE “COMBATENTE INIMIGO”
Invadido e ocupado o Afeganistão no final de 2001, ficaram nas mãos dos EUA largas centenas de “inimigos”, a maioria capturados nesse país asiático, outros entregues por países “amigos”, como o Paquistão, outros ainda raptados pela CIA pelo mundo fora, incluindo em países da UE, todos suspeitos de ligação à Al-Qaida ou da prática de actos terroristas ou de apoio ao terrorismo.
Que fazer com eles? Uma primeira hipótese seria entregá-los ao sistema judicial norte-americano, civil ou militar, conforme tivessem sido ou não capturados em combate. Isso teria a vantagem de, ao criminalizar os inimigos, os degradar aos olhos do mundo como meros delinquentes de direito comum.
Mas, em contrapartida, havia o perigo de tal opção obrigar ao respeito pelas regras do processo penal e pelas garantias fundamentais inscritas na Constituição norte-americana, o que imporia, além do mais, a revelação das provas da acusação e a realização de um julgamento público, e frustraria ou dificultaria extremamente a obtenção de informações à força.
A solução escolhida foi, assim, a de considerar os prisioneiros como combatentes e não delinquentes, o que era aliás coerente com a proclamação da “guerra ao terrorismo”.
Contudo, essa opção punha um problema, ou melhor, um obstáculo tremendo aos propósitos da administração Bush. É que a qualificação dos detidos como combatentes impunha a aplicação da III Convenção de Genebra de 1949 e do seu extenso rol de garantias e salvaguardas dos direitos dos prisioneiros de guerra, nomeadamente a proibição dos maus tratos, especialmente a tortura.
A equipa de Bush encontrou a solução ideal: os prisioneiros seriam combatentes, sim, mas combatentes ilegais, por não pertencerem a nenhum estado com o qual os EUA estivessem em guerra, mas antes a organizações terroristas clandestinas. E, como combatentes ilegais, não estariam abrangidos pelas Convenções de Genebra.
Estava assim encontrada uma nova categoria de seres humanos, desprovidos de quaisquer direitos ou de protecção jurídica mínima, quer do direito interno do estado onde estão detidos, quer da lei internacional.
Esta expropriação do estatuto de direitos e liberdades, inerentes à pessoa humana, que o direito internacional, e desde logo a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, garante, é uma atitude típica dos velhos (e novos) impérios: a redução dos inimigos a párias, e a arrogação do direito de definir o seu estatuto, conforme os interesses imperiais.
Mas esse conceito de “combatente ilegal” não está previsto em lado algum do ordenamento internacional, nem tem qualquer consistência jurídica. Com efeito, depois de o art. 4º da III Convenção de Genebra enumerar as categorias de pessoas que devem ser consideradas “prisioneiros de guerra”, para efeitos de beneficiarem do respectivo estatuto, o art. 5º da mesma Convenção determina: «Se existirem dúvidas na inclusão em qualquer das categorias do art. 4º de pessoas que tenham cometido actos de beligerância e que caíram nas mãos do inimigo, estas pessoas beneficiarão da protecção da presente Convenção, aguardando que o seu estatuto seja fixado por um tribunal competente.»
Com isto pretende claramente a Convenção não excluir da sua protecção nenhum “combatente”.
Mais precisa ainda é a regra estabelecida no Protocolo I às Convenções de Genebra, aprovado em 1977, o qual, no seu art. 75º, concede uma protecção mínima a qualquer pessoa que estiver em poder de uma parte no conflito e que não beneficie de tratamento mais favorável, nos termos das Convenções de Genebra, atribuindo-lhe, por um lado, protecção contra os tratamentos cruéis e degradantes, nomeadamente a tortura, e, por outro, o direito a ser informada das razões da detenção, e o direito a ser libertada, excepto no caso de imputação de uma infracção criminal; nesse caso, deverão ser julgadas por «um tribunal imparcial e regularmente constituído em conformidade com os princípios comummente reconhecidos do processo judicial regular», que deverá compreender nomeadamente o princípio da proibição da irretroactividade da lei penal, da presunção de inocência, da publicidade da audiência e em geral de todas as regras inerentes a um processo justo.
A intenção deste Protocolo é por demais evidente: não deixar ninguém “de fora”, isto é, sem protecção legal, no caso de existência de um conflito armado. Consequentemente, o conceito de “combatentes ilegais” não tem qualquer validade jurídica e não representa mais do que a expressão da arrogância e prepotência do poder imperial na sua vertente mais feroz.
Um relatório da Comissão dos Direitos Humanos da ONU, de Fevereiro de 2006, veio rejeitar o conceito de “combatente inimigo”, condenar as «medidas equivalentes à tortura» praticadas em Guantánamo (entre as quais citava o isolamento prolongado, a exposição a temperaturas, sons e luzes extremas, privação do sono durante dias seguidos e utilização de cães atiçados como ameaça, além de incidentes de uso excessivo de violência) e exigir o fecho do campo, assim confirmando e reforçando a rejeição generalizada por parte da comunidade internacional.
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