terça-feira, maio 05, 2009

Tudo é dor, tudo é orgasmo

Quando se cumprem seis anos da invasão, ocupação e destruição do Iraque, com mais de 1 milhão de mortos e 5 milhões de deslocados num país hoje sem médicos, nem professores, nem poetas, desprovido de serviços mínimos, esfomeado e doente, entregue a fanáticos e criminosos, abandonado à sua sorte pelo resto do mundo, que está mais pendente do menu do G-20 ou do vestuário de Hillary Clinton, só a Konami Digital Entertainment nos devolve à memória a existência desse horror distante. A empresa estadunidense não se importa de ganhar dinheiro se for para aumentar a insensibilidade; não se importa de vender os seus produtos em todo mundo se for para diminuir a consciência. Com um esforço combinado de erudição e mestria técnica, recolhendo imagens de arquivo e depoimentos de protagonistas, inspirando-se em Shakespeare e Hemingway, a empresa criou o videojogo “Seis Dias em Faluja”, que permite aos seus usuários experimentar minuto a minuto as emoções do fósforo branco e a execução de prisioneiros, no meio de estrondos tão falsos que parecem reais, com gráficos tão impossíveis que parecem autênticos. Resignados a tornar-se ricos à custa de danificar mais mentes, transigindo à fama a troco de degradar um pouco mais os espíritos, os criadores de “Seis Dias em Faluja” enfrentam o desafio – diz Peter Tamte, presidente da companhia – de «apresentar os horrores da guerra num jogo ao mesmo tempo muito divertido». Parecer-nos-ão mais horríveis os horrores ou mais divertida a diversão? Horrorizar-nos-á divertir-nos ou divertir-nos-á horrorizar-nos? Que horror o prazer de matar! Que prazer o horror de matar! A primeira conquista de Faluja, em Novembro de 2004, pouco credível, inspirou esta versão original que a próxima conquista de Faluja imitará; os marines que participaram na primeira conquista de Faluja, hoje assessores da Konami Digital Entertaintment, sacrificaram-se para que os marines que conquistem pela segunda vez Faluja – onde quer que esteja – possam destruí-la num jogo real antes de a destruir numa realidade recreativa.
Enquanto em Espanha 5.000 novos desempregados se somam todos os dias às listas do INEM e as classes médias recorrem aos refeitórios municipais, enquanto nos EUA 663.000 trabalhadores perdiam os seus empregos no mês de Março e milhares de pessoas são quotidianamente desalojadas das suas casas, só a cadeia de televisão Fox enfrenta e intervém decisivamente na crise económica mundial. Resignada a ver aumentar os seus índices de audiência à custa de imitar Nero, transigindo à riqueza se for para apoiar e estimular a escravatura, o canal estadunidense estreará nas próximas semanas um novo reality show de nome “Alguém tem que ir embora”. Na antiga Roma os espectadores do circo desfrutavam vendo como os escravos se matavam uns aos outros e se digladiavam entre si para sobreviver até à próxima batalha; os espectadores estadunidenses – e em seguida espanhóis – desfrutarão vendo como os empregados das empresas em crise decidem entre eles, contra eles mesmos, quem deve ser despedido para poupar despesas ao dono da companhia ou, o que é o mesmo, quem deve sobreviver até ao próximo despedimento. A empresa holandesa Endemol, contratada para a produção, não se importa de ter que revalorizar a sua cotação na bolsa se for para desprezar as vítimas do capitalismo; a Fox não se importa de superar em audiência a CNN se for para degradar, humilhar e desmobilizar os trabalhadores ameaçados. Mike Darnell, o génio da “telerrealidade” da Fox, declarou ao Washington Post sem nenhum empacho que está «convencido de que os milhões de estadunidenses que temem perder o seu emprego ou já o perderam se colarão à televisão para seguir a série». Programa de escravos para escravos, o número de espectadores aumentará à medida que se agrave a crise; programa de infelizes para infelizes, a crise proporcionará assim aos rancorosos o exutório emotivo de uma vingança dirigida – não aos responsáveis, não, excluídos das deliberações – mas aos que ainda sobrevivem aos golpes do capitalismo. A crise, afinal de contas, vale a pena: uns ganham muito dinheiro e outros sentem o prazer de perder tudo perante as câmaras ou o de ver outros seguir o mesmo destino no ecrã.
“Seis dias em Faluja” e “Alguém tem que ir embora” são apenas duas mostras de um rotineiro «estado do mundo e estado da alma», para evocar a definição que Kafka fazia do capitalismo. Em ambos os casos, aceitamos como natural, como normal, como desejável, como inevitável, uma realidade que nunca é tão horrível que – gag visual pelo meio – não nos proporcione também prazer. O capitalismo indemniza cada horror real com um jogo bem mais real ainda; compensa cada dor autêntica com um prazer de ficção bem mais intenso e bem mais autêntico. As revoluções não feitas prolongam o sofrimento e aproximam o apocalipse, só que o sofrimento e o apocalipse constituem o melhor da programação. Matar, matar-se, fazer mal, fazer-se mal, não induzem à revolta; reclamam simplesmente novas doses. Tudo é Apocalipse; tudo é orgasmo.
http://infoalternativa.org/spip.php?article842

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