quinta-feira, maio 07, 2009

Violência verbal

Uma das características de blogs muito visitados, como este, é a violência verbal de alguns comentadores. Seria um erro, contudo, pensar que isto se deve apenas à psicologia dessas pessoas — pessoas desagradáveis, irritáveis, invejosas, verbalmente violentas e semelhantes a hooligans, tendo prazer em tudo destruir à sua meteórica passagem. Com certeza que alguns destes factores terão o seu peso, mas o fenómeno é mais profundo e poderá estar inscrito na natureza humana.Os blogs são cada vez mais encarados como tabernas; lugares onde se conversa frivolamente sobre seja o que for, sem nada realmente se procurar saber. Mas há uma diferença que tem consequências drásticas: nos blogs não estamos a ver o rosto das pessoas. Isso torna o insulto mais tentador porque quando se ouve uma ideia com a qual discordamos, mas vemos o rosto da pessoa que a defende, somos mais comedidos em troca.O aspecto mais profundo de que quero falar contudo, não é este. Afinal, já existia coisas como tabernas muito antes de as pessoas terem desatado a estudar a realidade com atenção. Heródoto, por exemplo, inaugurou a história — mas antes dele já havia muitas histórias, mitos e lendas sobre o passado. O que ele inaugurou foi a tentativa sistemática de descobrir a verdade acerca do passado, com cuidado e calma. O que ele inaugurou foi uma atitude contranatura. Inaugurou a atitude crítica, na história, como os filósofos o fizeram na física, na biologia e na própria filosofia.Nunca precisámos realmente desta atitude crítica, ao longo da maior parte da nossa história como espécie. Mitos e lendas, disse que disse, boatos, ideias mal amanhadas, impressões superficiais — tudo isto é suficiente para sobreviver. De nada adianta saber matemática profundamente — ou biologia ou filosofia ou história — para a vida brutal de um animal que nasce, luta para sobreviver, reproduz-se e depois rebenta. Por isso, a atitude de avaliar cuidadosamente as ideias e argumentos não é algo que possamos fazer naturalmente; ou aprendemos a fazer isso porque temos curiosidade pelas coisas, ou nada irá impor essa atitude.E isto sempre foi assim. A única coisa que permite a existência de instituições como as universidades ou as escolas é a autoridade que estas representam e fazem os hooligans encolher-se. Quando Carl Sagan se pergunta o que terá tornado possível a destruição da Biblioteca de Alexandria está a fazer a pergunta errada; a pergunta certa é o que terá tornado possível a sua sobrevivência durante tanto tempo. Quando os Nazis queimavam livros em público era essa mesma hubris destrutiva que a alimentava, e não apenas uma ideologia remota. Os seres humanos não gostam de saber que há outros seres humanos que sabem coisas que eles não sabem porque se dedicam pacientemente a descobrir coisas que eles não valorizam. E basta um hooligan no meio de duzentas pessoas normais para todas se tornarem hooligans.Às vezes gosto de imaginar como seria a universidade, as conferências ou as revistas académicas de física ou de filosofia caso a atitude tão comum nos blogs aí prevalecesse também. Imagine-se o que seria um professor começar a dar trigonometria, por exemplo, e vários alunos começarem a rir e a gozar com a irrelevância das matérias, ou começar a insistir que há triângulos com cinco lados. Imagine-se o que seria nos artigos das revistas académicas mais prestigiadas os cientistas, filósofos e historiadores passarem a vida a insultar-se e a gozar uns com os outros. Imagine-se, finalmente, o que seria alguém tentar fazer uma ponte e os hooligans desatarem todos a gozar dizendo que não é preciso tantos cálculos complexos, o melhor é começar a fazer já — ou melhor, ir a nado — e depois logo se vê. Na verdade, não é preciso imaginar: veja-se a vergonha pública que é o pretenso debate político nacional, com os políticos e os comentadores a insultar-se o tempo todo nos jornais e na televisão, e os parlamentares a comportar-se como crianças mal-educadas da escola primária.A ilusão é pensar que é preciso explicar estes comportamentos, quando na verdade o que é preciso explicar, pois é isso que é raro e precioso, é o comportamento racional, paciente, epistemicamente virtuoso que só alguns seres humanos exibem. A injustiça cósmica é que todos beneficiam dessas virtudes epistémicas, sob a forma de confortos tecnológicos e médicos, apesar de só alguns as valorizarem e ainda menos as cultivarem.
http://dererummundi.blogspot.com/

Sem comentários: