quarta-feira, junho 03, 2009

Dos Gestos Fúteis


Quando se fala nos genocídios mais horríveis das últimas décadas, aparece sempre esta tendência de agredir o leitor com a necessidade de cada um se indignar: indignar com os carrascos, indignar com a sorte das vítimas, mas sobretudo indignar com o esquecimento a que se vai votando aquela desastrosa experiência, com a indiferença com que hoje vemos esse crime desproporcionado.
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No Público de hoje, Teresa de Sousa retoma o estilo. Censura-nos por não termos assistido à apresentação do livro de Denise Affonço, sobrevivente dos campos da morte de Pol Pot, que, no entanto, não pouparam a filha, nem o marido. Não me parece, contudo, que se trate de admoestação à fragilidade da nossa compaixão. Não há ninguém que não sofra com a história de Denise Affonço, ou de milhares e milhares de pessoas que sofreram o mesmo destino no Cambodja. Teresa de Sousa reservou outras admoestações para a condição da nossa consciência colectiva. Não nos perdoa por cedermos aos nossos “interesses” com a China. Pergunta, ainda com a sua lança em punho, “quem é que hoje quer incomodar a China?”. Ela, presumivelmente, quer. Nós, presumivelmente, não. Por outro lado, também a nossa amnésia conveniente dos acontecimentos no Cambodja é alvo de uma indignada reprimenda. Queremos esquecer, enquanto as vítimas têm o “direito à verdade”.
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De acordo, as vítimas têm o direito à verdade. Mas o que é insuportável neste tipo de prosa é a disponibilidade absolutamente gratuita para saldar antigos passivos e ainda aparecer como reserva moral da civilização ocidental. Ora, parece-me muito mais saudável insistir na educação moral e intelectual que nos pode imunizar contra este tipo de tentações totalitárias – que Teresa de Sousa confunde com “utopias ideológicas”. Parece-me muito mais proveitoso, se bem que com menos brilharetes emocionais e menos sortidos retóricos, recordar que essas tentações ideológicas procuram sempre encontrar terreno fértil na degeneração moral e na falência intelectual que algumas correntes se entretiveram – e se entretêm ainda hoje – a patrocinar. Porque se ninguém discorda que as vítimas têm o direito à verdade, antes desse direito tinham um outro: o direito de não serem vítimas destes carniceiros políticos. É no momento politicamente decisivo que é necessário mostrar a indignação, uma indignação que não seja estéril. Se é do Cambodja que falamos, então era na década de 70 que era preciso dizer “não”. Se Baptista Bastos se celebrizou por perguntar aos seus convidados “onde é que estavas no 25 de Abril?”, então uma ligeira adaptação da pergunta indica-nos o cerne do problema: “onde é que estava Teresa de Sousa quando os Khmer Rouges entraram em Phnom Penh?”. Porque entre os vários grupos de pessoas com quem os sobreviventes gostariam, nos seus piores momentos, de ajustar contas, contam-se, sem dúvida, os coetâneos que no momento politicamente eficaz preferiram denunciar o imperialismo americano e louvar os caminhos para o socialismo.
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Hoje em dia, muitos do que denunciam a indiferença da “sociedade”, convivem bem com a presença, dimensão e importância de partidos políticos que não renegam, bem pelo contrário, o seu legado totalitário. Isso não os perturba. Muitos dos que se indignam, não se incomodam com a farsa montada em plenas Nações Unidas, em cujas comissões de defesa dos direitos humanos são países como Cuba, Líbia e Síria que têm lugar de honra. Isso não provoca comoção "democrática" junto das nossas almas mais generosas. Daqui por 30 anos devem ser os mesmos que virão assumir poses dramáticas e pronunciar duras palavras com a vozinha angélica da nossa atraiçoada consciência.
http://cachimbodemagritte.blogspot.com/

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