quarta-feira, junho 24, 2009

O efeito do beijinho

Quem já lidou com crianças sabe que o efeito de placebo é real. E não é só com crianças. Qualquer problema parece mais fácil de superar se tivermos apoio e se soubermos que alguém está a tratar do assunto. A religião é um exemplo extremo do enorme poder do efeito de placebo. Mas este efeito não é um medicamento. É apenas um dos muitos factores contribuem para a cura.

A cura e a doença são processos complexos. Quer o nosso organismo combata uma infecção quer se tente matar por uma alergia, muitas coisas acontecem ao mesmo tempo. E não há duas pessoas a quem aconteça exactamente o mesmo. Uma terapia é uma tentativa de empurrar estes processos para um desfecho mais favorável mas, pela sua complexidade, raramente se pode garantir um efeito e um resultado. Por isso, avaliar a eficácia de uma terapia exige considerar o seu efeito médio para além de todos os outros factores, como a fisiologia de cada pessoa, os seus hábitos de vida, estado emocional, nutrição, outras doenças e até as expectativas do doente e do médico. Isto exige ensaios clínicos com dupla ocultação.

Nestes ensaios divide-se os voluntários aleatoriamente em dois grupos, um sujeito à terapia e o outro a algo parecido mas sem o essencial. Um comprimido com a mesma cor e sabor mas sem o princípio activo, ou agulhas espetadas fora das tais linhas que se propõe essenciais à cura. Com esta distribuição aleatória dilui-se as diferenças entre pacientes. E são com dupla ocultação porque nem os pacientes nem os médicos que os avaliam sabem em que grupo está cada paciente, o que elimina distorções causadas pela expectativa de cada um. O efeito da terapia é o que sobrar, se sobrar alguma coisa.

É por isso que dizer que uma terapia actua pelo efeito placebo é um erro conceptual. Não é que o efeito placebo não exista, mas é como dizer que um medicamento actua por a pessoa fazer exercício ou ter cuidado com as correntes de ar. Esses são factores reais mas, se são externos à terapia e independentes desta, não devem contar para medir a eficácia do tratamento. Infelizmente, para cada paciente o mais saliente é se a terapia o faz sentir bem e não se melhora as probabilidades de cura em relação à média. Esta eficácia ilusória do efeito placebo é uma grande vantagem para a “medicina” alternativa.

Outra vantagem é não ter limite de recursos. Por um lado porque agulhas e gotas de água há que chegue para todos e, por outro, porque o praticante “holístico” tem como prioridade o bem estar daquele paciente que lhe está a pagar. Os outros que vão ao CATUS. O melhor para este “terapeuta”, tal como para o médico privado, é ter pacientes que paguem bem e fiquem satisfeitos, mesmo sendo poucos. Muitos pacientes que paguem pouco e se curem insatisfeitos dão mais trabalho que dinheiro. A sensação que muitos têm que na “medicina” alternativa são atendidos com tempo e atenção enquanto que os serviços públicos de saúde os despacham com meia dúzia de comprimidos não é ilusória. É mesmo assim. Mas tem de ser. O João Vasco deu um exemplo que ilustra porquê:

«Uma amiga da minha mãe estava com dores de cabeça lancinantes e foi despachada pela sua médica com um "tome uma aspirina"; e por mais que ela descrevesse o quão lancinantes eram as dores, mais a médica reagia como se ela estivesse a fazer fita como quem diz "próximo!". Afinal, foi a outro médico que pediu para fazerem um TAC e ela tinha um derrame. Se não tivesse ido ao segundo médico em poucos dias - descobriu-se - teria morrido.»

É possível que esta médica tenha sido incompetente e tenha ignorado algum sintoma que justificasse a TAC. Mas a incompetência não se resolve com “medicinas” alternativas, e outro factor é que a TAC exige recursos limitados. Se cada médico receitasse uma TAC a cada paciente com dores de cabeça fortes, esta senhora teria sido rapidamente encaminhada para uma lista de espera de vários meses. E aí, sim, teria morrido. É por isso que quando vamos ao centro de saúde com febre e dor de garganta nos dão meia dúzia de comprimidos quase sem ver o que temos. Além de ser preciso atender todas as pessoas que lá vão, para a saúde de todos é melhor dar comprimidos que curem 95% dos pacientes, e que há para todos, do que entupir durante meses os laboratórios de análises. Os exames aprofundados ficam para os 5% que lá voltarem a queixar-se que os comprimidos não fizeram efeito.

Quando estamos doentes queremos o tratamento para começar a melhorar e o beijinho para nos sentirmos logo melhor. Mas não podemos responsabilizar os médicos por ambos porque os recursos não dão para tudo e todos. Se em vez de dez minutos a tirar a febre o médico dedica cinquenta a reconfortar cada paciente, 20% vão sentir-se melhor e 80% ficam por tratar. É este o nicho das “medicinas” alternativas. A venda de beijinhos não sofre destas restrições porque não tem de atender urgências nem casos graves, exige poucos recursos materiais e é só para quem paga e em função de quanto paga. Por isso parece um bom complemento. Infelizmente, tal como os beijinhos com que tratamos os nossos filhos, só serve se dissermos que assim já passa. E isto é perigoso para qualquer problema mais grave que um joelho esfolado.
http://ktreta.blogspot.com/

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