Nos telejornais de ontem, corria uma notícia que vinha confirmar o que o senso comum conservador adora dizer: que os funcionários públicos trabalham pouco. Porquê? Porque em Portugal, como em França, os funcionários públicos têm um horário de 35 horas semanais (valeria a pena contabilizar, por exemplo, quanto trabalho fora da escola fazem alguns professores, e outros dados teríamos…). Assim, lá se ouviram os inevitáveis comentários de que enfermeiros, médicos, professores, carteiros, varredores ou outros funcionários do Estado trabalham pouco. Ninguém acredita…
A verdadeira discussão, como é óbvio, deveria ser outra. As 35 horas semanais de trabalho são uma conquista positiva ou não? A redução do tempo de trabalho é ou não é uma das grandes aquisições civilizacionais que temos? A limitação das horas de trabalho por semana e o direito a férias remuneradas são ou não são uma das mais importantes vitórias do movimento popular? E, assim sendo, não deveríamos celebrar o facto de termos um horário de trabalho menor com o mesmo salário? E não deveríamos lutar pela sua extensão a todos os trabalhadores, em vez de reproduzirmos esse preconceito mesquinho que pretende dividir para reinar e virar uns trabalhadores contra os outros?
Nos idos anos 30 do século XX, a França, que permanece como o país com mais dias de férias consagrados na lei, tinha um Governo de Frente Popular. Nessa altura, havia socialistas que estavam à frente dos partidos chamados socialistas. Foi uma época de importantes conquistas sociais. Uma das mais relevantes e simbólicas foi o direito a férias: duas semanas, estabelecidas em 1936. Uma extraordinária mudança para a vida de muita gente.
Antes disso, as férias eram um privilégio dos burgueses e dos aristocratas. O povo – aqueles que trabalhavam – não tinha direito ao descanso. O reconhecimento de que os trabalhadores tinham direito a férias, e que esse tempo de não trabalho devia ser remunerado, não foi apenas uma forma de limitar o tempo da exploração capitalista. Foi também o reconhecimento de que os e as trabalhadoras são seres dotados de inteligência, com outras necessidades para além do trabalho, com vontade de ler, de descansar, de passear, de gozar a vida. E de que o direito ao trabalho não deve significar a escravização completa das pessoas, mas sim ser uma fonte de dignidade e de direitos. Talvez por isso, e não sem ironia, o historiador Jean-Philippe Bloch dizia que a grande vantagem de se ter um trabalho é poder gozar férias…
Foi porque as férias são uma conquista histórica tão central que se tornou célebre essa frase francesa segundo a qual «a civilização se medirá pelos meses de férias que os trabalhadores conseguirem arrancar aos patrões». Com efeito, a justiça da distribuição da riqueza e do trabalho (e portanto, do aumento da produtividade conseguido, entre outras coisas, com a evolução tecnológica) na nossa sociedade pode medir-se pela redução do horário de trabalho. Trabalhar menos horas para ter mais tempo para viver é certamente uma medida de civilização.
Acontece que as férias remuneradas são resultantes de um trabalho com contrato. Ou seja, vivemos hoje em Portugal e no resto da Europa uma situação em que uma parte muito significativa da população não pode gozar deste direito. Voltamos ao tempo do desprezo pelos trabalhadores e da selvajaria.
Em Portugal, não gozam férias remuneradas, desde logo, o cerca de meio milhão de desempregados e, dentro destes, as 200 mil pessoas sem subsídio. Mas também, de forma gritante, as 900 mil pessoas que, estando a recibo verde, ganham apenas quando “prestam o serviço” para que são contratadas (sim, não esqueçamos que os trabalhadores a “falso recibo verde” não têm subsídio de desemprego, nem protecção na maternidade na maior parte dos casos, nem férias remuneradas…). E não gozam férias, ainda, todos aqueles trabalhadores temporários ou que têm contratos que, milagrosamente, acabam em Julho para renasceram em Setembro, assegurando que não há férias pagas para ninguém.
A regressão que está actualmente em curso em Portugal, e na qual o desemprego é utilizado como chantagem para impor a precariedade e a precariedade é usada como mecanismo normal de regulação do trabalho, é uma regressão civilizacional sem precedentes. Significa que há um poder político que desistiu da herança socialista, que rasga todos os direitos que constituíam a social-democracia e que exclui cada vez mais gente do contrato social. O direito ao trabalho e, a partir dele, a luta pelas férias remuneradas, voltam a ser objecto de combate. Em nome dele, a esquerda socialista saberá sempre onde se colocar e de que lado está a civilização.
http://infoalternativa.org/spip.php?article1036
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