domingo, agosto 23, 2009

O NEGRO E O VERMELHO

“Ideia Geral da Revolução no Século XIX” (1851)

O Fim da Autoridade



(...) Passo imediatamente à hipótese final.Aquela em que o povo, voltando ao poder absoluto, e tomando-se a si mesmo, na sua totalidade, por déspota, se tratasse consequentemente: aquela em que, por consequência, acumulasse, como deve ser, todas as atribuições, em que reunisse na sua pessoa todos os poderes: legislativo, executivo, judicial e outros, se existirem; em que fizesse todas as leis, emitisse todos os decretos-lei, portarias, acórdãos, juízos; expedisse todas as ordens; tomasse à sua conta todos os seus agentes e funcionários, de alto a baixo da hierarquia; lhes transmitisse directamente e sem intermediário as suas vontades; em que observasse a assegurasse a sua execução, impondo a todos uma responsabilidade proporcional; em que se adjudicasse todas as dotações, listas civis, pensões, encorajamentos; em que gozasse enfim, rei de facto e de direito, todas as honras e benefícios da soberania, poder, dinheiro, prazer, repouso, etc.
(...) Infelizmente este sistema sem mácula, ouso afirmá-lo, no seu todo e nos detalhes, encontra na prática uma dificuldade inultrapassável.
É que o governo pressupõe um correlativo, e que se todo o povo, como soberano, governa, em vão procuraremos os governados. O fim do governo, lembramos, não é unificar a divergência de interesses -- quanto a isto ele reconhece a sua perfeita incompetência --, mas sim manter a ordem na sociedade apesar do conflito de interesses.Por outras palavras, o governo tem como fim suprir à falta de ordem económica e de harmonia industrial. Se deste modo p povo se ocupa, no interesse da sua liberdade e da sua soberania, do governo, deixa de se poder ocupar com a produção, pois que, pela natureza das coisas, produção e governo são duas funções incompatíveis, e querer acumulá-las seria introduzir a divisão generalizada. Assim, uma vez mais ainda, onde estarão os produtores? Onde os governados? Onde os administrados? Onde os julgados? Onde os executados?
(...) É preciso ir até à hipótese extrema, aquela em que o povo entra em massa para o governo, preenche todos os poderes, e sempre a deliberar, votar, executar, como numa insurreição, sempre unânime, não tem por cima de si nem presidente, nem representantes, nem comissários, nem país legal, nem maioria, numa palavra, em que é o único legislador e funcionário na sua colectividade.
Mas se o povo organizado desta maneira para o poder já não tem nada acima de si, pergunto-me o que terá por baixo? Por outras palavras, onde está o correlativo do governo? Onde estão os produtores, os industriais, os comerciantes, os soldados? Onde estão os trabalhadores e os cidadãos?
Dir-se-à que o povo é todas estas coisas ao mesmo tempo, que produz e legisla simultaneamente, que trabalho e governo são indivisos na sua pessoa? É impossível, pois que, por um lado, tendo o governo como razão de ser a divergência dos interesses e, por outro, não se podendo admitir nenhuma solução de autoridade ou de maioria, sendo só o povo na sua unanimidade qualificado para fazer passar leis, consequentemente alongando-se o debate legislativo com o número de legisladores e crescendo os assuntos de Estado na razão directa do grande número dos homens de Estado, os cidadãos deixem de ter oportunidade para se ocuparem com as suas tarefas industriais; todos os seus dias não serão de mais para despacharem o trabalho do governo.Não há meio termo: ou trabalhar ou reinar.
(...) era assim, com efeito, que as coisas se passavam em Atenas, onde durante vários séculos, com a excepção de alguns intervalos de tirania, todo o povo estava na praça pública, discutindo de sol a sol.Mas os vinte mil cidadãos de Atenas, que constituíam o soberano, tinham quatrocentos mil escravos a trabalharem para eles, ao passo que o povo francês não tem ninguém para o servir e mil vezes mais assuntos a despachar do que os Atenienses.Repito a minha pergunta: sobre o que é que o povo, agora legislador e príncipe, legislará? Para que interesses? Com que fim? E enquanto governar quem o alimenta? (...) Se o povo em massa passar para o Estado, o Estado não tem a menor razão de ser, pois que deixa de haver povo: a equação do governo tem como resultado zero.
A ideia capital, decisiva, desta revolução não é com efeito: fim à autoridade na Igreja, no Estado, na terra, no dinheiro?
Ora, fim à autoridade quer dizer o que nunca se viu, o que nunca foi compreendido, acordo do interesse de cada um com o interesse de todos, identidade de soberania colectiva e soberania individual.
Fim à autoridade!, quer dizer dívidas pagas, servidões abolidas, hipotecas levantadas, rendas reembolsadas, despesas com o culto, a Justiça e o Estado suprimidas; crédito gratuito, troca igual, associação livre, valor regulado; educação, trabalho, propriedade, domicílio, preços baixos, garantidos; fim ao antagonismo, fim à guerra, fim à centralização, fim aos governos, fim aos sacerdócios. Não é isto a sociedade saída da sua esfera, caminhando numa posição invertida, de pernas para o ar?
Fim à autoridade!, quer dizer ainda o contrato livre em vez da lei absolutista; a transacção voluntária em vez da arbitragem do estado; a justiça equitativa e recíproca, em vez da justiça soberana e distributiva; a moral racional em vez da moral revelada; o equilíbrio das forças a substituir o equilíbrio dos poderes; a unidade económica em vez da centralização política.Ainda uma vez mais, não é a isto que ousarei chamar uma conversão completa, uma reviravolta, uma revolução?
A distância que separa estes dois regimes pode ser calculada pela diferença dos seus estilos.
Um dos momentos mais solenes da evolução do príncípio da autoridade é o da promulgação do Decálogo.A voz do anjo ordena ao povo, prostrado no sopé do Sinai:
Adorarás o Eterno, diz-lhe, e somente o Eterno;
Só jurarás em seu nomu;
Não trabalharás nos seus dias feriados, e pagar-lhe-às a dízima;
Honrarás teu pai e tua mãe;
Não matarás;
Não roubarás
Não fornicarás;
Não cometerás nenhuma falsidade;
Nãoserás invejoso nem caluniador;
Pois o Eterno o ordena, e foi o Eterno que te fez o que tu és.O Eterno é o único soberano, o único sábio, o único digno; o Eterno castiga e recompensa, o Eterno pode fazer-te feliz e infeliz.
Todas as legislações adoptaram este estilo; todas, falando ao homem, empregam a fórmula soberana.O hebreu ordena no futuro, o latim no imperativo, o grego no infinitivo.Os modernos fazem omesmo: (...) qualquer que seja a lei, não importa de que boca venha, ela é sagrada a partir do momento em que é pronunciada por essa trmbeta fatídica que connosco é a maioria.
“Não te juntarás;
Não imprimirás;
Não lerás;
Respeitarás os teus representantes e funcionários, que o acaso do escrutínio ou a vontade do Estado te terão dado;
Obedecerás às leis que a sua sabedoria te terá feito;
Pagarás o orçamento fielmente;
E amarás o governo, teu senhor e deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua inteligência: porque o governo sabe melhor do que tu o que és, o que vales, o que te convém, e tem o poder para castigar os que desobedecem aos seus mandamentos, assim como para recompensar até à quarta geração aqueles que lhe são gratos”.
Oh, personalidade humana! Como é possível que durante sessenta séculos tenhas vivido miseravelmente nesta abjecção! Dizes-te santa e sagrada, e não passas da prostituta, infatigável, gratuita, dos teus lacaios, dos teus monges e dos teus soldados de velha guarda.Sabe-lo e sofres com isso! Ser governado é ser guardado à vista, inspeccionado, espiado, dirigido, legislado, regulamentado, arrumado, doutrinado, pregado, controlado, estimado, apreciado, censurado, mandado, por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude.
Ser governado é ser, a cada operação , a cada transacção, a cada movimento, notado, registado, recenseado, tarifado, selado, medido, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, admoestado, impedido, reformado, reeducado, corrigido. É, com o pretexto de utilidade pública, e em nome do interesse geral, ser pedido em empréstimo, exercitado, espoliado, explorado, monopolizado, abalado, pressionado, mistificado, roubado; depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, injuriado, vexado, encurralado, maltratado, batido, desarmado, garrotado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, ainda por cima, jogado, escarnecido, ultrajado, desonrado.Eis o governo, eis a sua justiça, eia a sua moral! E dizer que há entre nós democratas que pretendem que o governo tem coisas boas; socialistas que apoiam, em nome da liberdade,da igualdade e da fraternidade, esta ignomínia; proletários que se candidatam à presidência da República! Hipócrisia!...Com a revolução, é outra coisa. A procura das causas primeiras e das causas finais é eliminada da ciência económica assim como das ciências naturais.
A ideia de progresso toma, na filosofia, o lugar da do absoluto.
A Revolução sucede à revelação.
A razão, auxiliada pela experiência, expõe ao homem as leis da natureza e da sociedade; depois diz:
Estas leis são as da própria necessidade. Nenhum homem as fez; ninguém as impõe. Foram descobertas pouco a pouco, e eu só existo para testemunhá-las.
Se as observares, serás justo e bom, se as violares, serás injusto e mau. Não te proponho nenhum outro motivo (...), és livre para aceitar ou recusar.
Se recusares, fazes parte da sociedade dos selvagens. Saído da comunhão com o género humano, tornas-te suspeito. Nada te protege. Ao menor insulto, o primeiro passante pode-te bater, sem incorrer noutra acusação que não seja a de sevícias inutilmente exercidas contra um bruto.
Se te comprometeres com o pacto, pelo contrário, fazes parte da sociedade dos homens livres. Todos os irmãos que se comprometerem contigo, prometem-te fidelidade, amizade, ajuda, serviço, troca (...)
Eis todo o contrato social.

* O sentido normalmente atribuído à palavra anarquia é ausência de príncipio, ausência de regra; daqui o facto de ter sido feita sinónimo de desordem ( nota de Proudhon).

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