Mas haverá no homem algo de mais antigo e mais profundo que o sentimento religioso?
Existe o próprio homem, quer dizer, a vontade e a consciência, o livre arbítrio e a lei, opostos num antagonismo perpétuo. O homem está em guerra consigo mesmo: Porquê?
«O homem, dizem os teólogos, cometeu o pecado original: a nossa espécie é culpada de uma atitiga prevaricação. A humanidade perdeu-se nesse pecado: o erro e a ignorância tornaram-se seu apanágio. Leiam a prova da necessidade do mal na permanente miséria das nações. O homem sofre e sofrerá sempre: a sua doença é hereditária e constitucional. Usem paliativos, empreguem analgésicos: não há nenhum remédio.»
Este discurso não é próprio unicamente dos teólogos; encontra-se, em termos equivalem", fios escritos dos filósofos materialistas, partidários de uma perfectibilidade indefinida. Destutt de Tracy ensina formalmente que a miséria, os crimes, a guerra, são a condição inevitável do nosso estado social, um mal necessário contra o qual seria loucura revoltar-se. Assim, necessidade do mal ou perversão original são, no fundo, a mesma filosofia.
«0 primeiro homem pecou.» Se os crentes da Bíblia interpretassem fielmente, diriam: O homem primeiramente peca, quer dizer, engana-se: porque "pecar, errar, enganar-se significa a mesma coisa.
«As consequôncias do pecado de Adão são hereditárias: sendo a primeira delas a ignorância.» Com efeito, a ignorância é inata na espécie como no indivíduo; mas, no respeitante a muitos problemas, mesmo de ordem moral e política, esta ignorância da espécie foi saneada: quem nos garante que a não ultrapassaremos completamente? Há progresso contínuo do género humano para a verdade e triunfo da luz sobre as trevas. O nosso mal não é, pois, perfeitamente incurável, e a explicação dos teólogos é mais que insuficiente; é ridícula, visto que se reduz a esta tautologia: «O homem engana-se, porque se engana.» Enquanto que seria preciso dizer: «0 homem engana-se, porque aprende.» Ora, se o homem conseguiu instruir-se de tudo o que necessita saber, acreditamos que, não se enganando mais, deixará de sofrer.
Se interrogarmos os doutores desta lei, que nos disseram encontrar-se gravada no coração do homem, logo reconheceremos que a discutem ignorado o que ela representa e que há quase tantas opiniões como autores sobre as questões mais importantes; que não se encontram dois que estejam de acordo sobre a melhor forma de governo, sobre o princípio da autoridade, sobre a natureza do direito; que todos vogam ao acaso num mar sem fundo nem margens, abandonados à inspiração do seu sentido privado que, modestamente, tomam pela razão justa. E, perante este acervo de opiniões contraditórias, diremos: «O objecto das nossas pesquisas é a lei, a determinação do princípio social; ora os políticos, quer dizer, os homens da ciência social, não se entendem; portanto, é neles que está o erro: e, como todo o erro tem uma realidade por objecto, é nos seus livros que se deve encontrar a verdade, aí posta por eles, sem o saberem.»
Ora, de que tratam os jurisconsultos e os publicistas? De justiça, equidade, liberdade, lei natural, leis civis, etc. Mas que é a justiça? Qual é o princípio, o carácter, a fórmula? A esta pergunta é evidente que os nossos doutores nada têm a responder: porque de outra maneira a sua ciência, partindo de um princípio claro e certo, libertar-se-ia do seu eterno probabilismo, e acabariam todas as disputas.
Que é a justiça? (os teologos respondem: Toda a justiça vem de Deus. Isso é verdade, mas nada esclarece.
Os filósofos deviam ser mais instruídos: têm discutido tanto sobre o justo e o injusto! Infelizmente, a análise prova que o seu saber se reduz a nada, passando-se com eles o mesmo que com aqueles selvagens que oravam ao Sol: Oh! - Oh! é um grito de admiração, amor, entusiasmo: mas quem procuraria saber se o Sol tiraria algum proveito da interjeição Oh! Precisamente o que se passa com os filósofos, em relação à justiça. A justiça, dizem eles, é filha do céu, luz que Ilumina todo o homem que nasce, prerrogativa mais bela da nossa natureza, que nos distingue dos animais e assemelha a Deus, e outras coisas deste género. A que se reduz esta piedosa litania? A oração dos selvagens: Oh!
Tudo o que a sabedoria humana ensinou de mais razoável, no que respeita à justiça, está contido na famosa máxima: Faz aos outros aqulio que queres que te façam; não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti.
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