Mas esta regra de moral prática é nula para a ciência: que direito tenho eu de exigir dos outros que cumpram com esse preceito? Nada significa dizer que dever e direito se equivalem, a menos que se defina a natureza desse direito.
Tentemos atingir algo de mais preciso e positivo.
A justiça é o astro central que governa as sociedades, o pólo sobre que o mundo político gira, o princípio e regra de todas as transacções. Entre os homens nada se faz que não seja valorizar o direito invocando a justiça. A justiça não é obra da lei: pelo contrário, a lei é apenas a declaração e a aplicação do justo, em todas as circunstâncias em que os homens se possam encontrar relacionados. Portanto, se a ideia que nós fazemos do justo e do direito estivesse mal determinada, se fosse incompleta ou mesmo falsa, é evidente que todas as nossas aplicações legislativas seriam más, as instituições viciosas, a política errada: daí advirta desordem o mal social.
Esta hipótese da perversão da justiça no nosso entendimento e consequentemente nos nossos actos seria um facto demonstrado se as opiniões dos homens, relativamente ao conceito de justiça e suas aplicações, não tivessem sido constantes; se, em épocas diversas, tivessem sofrido modificações; numa palavra, se tivesse havido progresso nas ideias. Ora é o que a história nos prova pelos testemunhos mais surpreendentes.
Há mil e oitocentos anos, o mundo, sob a protecção dos Césares, consumia-se na escravatura, superstição e volúpia. O povo, embriagado por longos bacanais, tinha perdido as noções do direito e do dever: a guerra e a orgia dizimavam-no; o gasto e o trabalho das máquinas, quer dizer, dos escravos, impediam-no de se reproduzir, tirando-lhe os meios de subsistência. O barbarismo renascia desta corrupção imensa e espalhava-se, como lepra galopante, pelas provincias despovoadas. Os sábios previam o fim do império mas como evitar esse fim? Que poderiam fazer para salvar a sociedade envelhecida? Seria necessário mudar os objectos da estima o veneração pública, abolindo direitos consagrados por uma justiça dez vezes secular. Dizia-se: «Roma venceu pela sua política e pelos seus deuses; qualquer reforma no culto e no espírito público seria loucura e sacrilégio.
Roma, indulgente para com as nações vencidas, conserva a vida dos povos mas oprime-os; os escravos são a fonte mais fecunda das suas riquezas; o enfraquecimento dos povos era negação de direitos e ruína de finanças. Roma, mergulhada em delícias e empanturrada com os despojos do universo, abusa da vitória e do poder; o luxo e as volúpias são o preço das conquistas: não pode abdicar nem despojar-se deles.» Roma era assim apoiada pelo facto e pelo direito. As suas pretensões eram justificados por todos os costumes e pelo direito dos povos. A idolatria na religião, a escravatura no Estado, o epicurismo na vida privada eram a base das instituições. Tocar-lhes seria abalar os fundamentos da sociedade e, segundo a expressão moderna, abrir caminho às revoluções. Ninguém se lembrou disso; e, no entanto, a humanidade morria no sangue e na luxúria.
De repente apareceu um homem trazendo a Palavra de Deus: ainda hoje não se sabe quem era nem donde vinha ou quem lhe teria sugerido tais ideias. Anunciava por toda a parte que o mundo ia ser renovado; que os padres eram víboras, os advogados ignorantes, os filósofos hipócritas e mentirosos; que o senhor e o escravo eram iguais, que a usura e tudo o que se lhe assemelhasse era um roubo, que os proprietários e os homens de prazer arderiam um dia, enquanto os pobres de espírito e os puros habitariam num lugar de repouso. Acrescentava muitas outras coisas não menos extraordinárias.
Este homem, Palavra de Deus, foi denunciado e preso como inimigo público pelos: padres e juristas, conseguindo que o povo pedisse a sua morte. Mas este assassínio jurídico, fazendo aumentar os seus crimes, não abafou a doutrina que a Palavra de Deus semeara. Depois os primeiros apóstolos espalharam-se por toda a parte, pregando o que chamavam de boa-nova, agrupando à sua volta milhões de fiéis, morrendo sob a justiça romana quando terminada a tarefa. Esta propaganda obstinada, guerra de carrascos e mártires, durou perto de trezentos anos, após os quais o mundo se achou convertido. A idolatria foi destruída, a escravatura abolida, a dissolução deu lugar a costumes mais austeros, o desprezo pelas riquezas foi levado, algumas vezes, ao extremo da renúncia completa. A sociedade foi salva pela negação dos seus princípios, pelo agitar da religião e pela violação dos direitos mais sagrados. A ideia do justo alcançou, nesta revolução, uma dimensão não imaginada até aí!
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