sábado, janeiro 30, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

A justiça tinha existido apenas para os senhores (1); começou, desde então, a existir para os servos.
No entanto, a nova religião esteve longe de dar todos os seus frutos. Houve um melhoramento nos costumes públicos, um abrandamento da opressão: mas, quanto ao resto, a semente do Filho do homem, caída em corações idolátras, produziu apenas uma mitologia, quase poética e inúmeras discórdias. Em vez de se agarrarem às consequências práticas dos princípios de moral e de governo que a Palavra de Deus trouxera, entregaram-se a especulações sobre a sua nascença, a sua origem, a sua pessoa e os seus actos; fizeram-se epílogos sobre as suas parábolas e, do conflito das opiniões mais extravagantes sobre problemas insolúveis, sobre textos não compreendidos, nasceu a teologia, que se pode definir como ciência do lnfinitamente absurdo.
A verdade cristã não ultrapassou a idade dos apóstolos; o Evangelho comentado e simbolizado por Gregos e Romanos, repleto de fábulas pagãs, tornou-se um sinal de contradição; e até hoje o reinado da Igreja infalível apenas engendrou um grande obscurecimento. Diz-se que as portas do Inferno não prevalecerão sempre, que a Palavra de Deus voltará e os homens conhecerão enfim a verdade e a justiça; mas então findará o catolicismo grego e romano, assim como os fantasmas da opinião que desaparecerão à luz da ciência.
Os monstros que os sucessores dos apóstolos tinham por missão destruir reapareceram pouco a pouco, graças ao fanatismo imbecil e, algumas vezes também, à conivência dos padres e teólogos. A história da queda das comunas, em França, apresenta constantemente a justiça e a liberdade determinando-se no povo, apesar dos esforços conjugados dos reis, nobreza e clero. No ano de 1789 depois de Cristo, a nação francesa, dividida por castas, pobre e oprimida, debatia-se sob o absolutismo real, a tirania dos senhores e dos parlamentos e a intolerância sacerdotal. Havia o direito do rei e o direito do padre, o direito do nobre e o direito do plebeu;
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(1) A religião, as leis o o casamento eram privilégios dos homens livres e, ao princípio, unicamente dos nobres. Dil majorum gentium, deuses de famílias patrícias; jus gontium, direito das pessoas, quer dizer das famílias ou dos nobres. O escravo e o plebeu não constituíam família; os seus filhos eram considerados como componentes de um rebanho. Nasciam animais, deviam viver como animais.

havia previlégios de nascença, de província, de comunas, de corporacões e de ofícios: no fundo de tudo isto a vigência, a imoralidade e a miséria. Já há algum tempo que se falava de reforma; os que mais a desejavam para se aproveitar dela e o povo, que tinha tudo a ganhar, não esperavam grande coisa nem se manifestavam. Durante muito tempo esse pobre povo hesitou sobre os seus direitos quer por incredulidade, desconfiança ou desespero: dir-se-ia que o hábito de servir tinha roubado a coragem às velhas comunas, tão orgulhosas na Idade Média.
Apareceu por fim um livro que se resumia a duas proposições: O que é o terceiro estado? nada. O que devia sert? tudo. Alguém acrescentou, em forma de comentário: O que é o rei? é o mandatário do povo.
Foi como uma revelação súbita: rasgou-se um véu imenso, de todos os olhos caiu uma venda espessa. O povo pôs-se a raciocinar:
Se o rei é nosso mandatário deve prestar contas;
Se deve prestar contas está sujeito a ser fiscalizado;
Se pode ser fiscalizado é responsável;
Se é responsável, é punível;
Se é punível, é-o segundo os seus méritos;
Se deve ser punido segundo os seus méritos pode ser punido com a morte.
Cinco anos depois da publicação da brochura de Sieyès, o terceiro estado era tudo; o rei, a nobreza e o clero já nada valiam; Em 1793 o povo, sem se prender com a ficção constitucional da inviolabilidade do soberano, conduziu Luís XVI ao cadafalso; em 1830 acompanhou Carlos X a Chesburgo. Se se tivesse enganado na avaliação dos delitos teria cometido na realidade um erro; mas, em direito, a Lógica que o fez agir é irrepreensível. O povo, ao punir o soberano, fez precisamente o que tanto se reprovou ao governo de Julho não ter feito, depois da execução de Luís Bonaparte em Estrasburgo: atingiu o verdadeiro culpado. É uma aplicação de direito comum, uma determinação solene da justiça em matéria penal (').
O espírito que originou o movimento de 89 foi um espírito de contradição;
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(1) Se o chefe do Poder executivo é responsável, os deputados também o devem ser. É espantoso que nunca ninguém se tenha lembrado disto; seria assunto para uma tese interessante. Mas afirmo que por nada deste mundo eu a quereria defender: o povo tem ainda lógica suficiente para não precisar que eu lhe forneça a matéria para tirar certas conclusões.

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