domingo, janeiro 31, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

isso bastou para demonstrar .que a ordem que substituiu a antiga, nada teve de metódico e reflectido; que, nascida da cólera e do ódio, não podia ter o efeito de uma ciência formada na observação e no estudo; numa palavra, que as bases não eram deduzidas do conhecimento profundo das leis da natureza e da sociedade. Vê-se, assim, que nas instituições ditas novas, a república se serviu dos mesmos princípios contra os quais combatera, e sofreu a influência de todos os preconceitos que tivera intenção de banir. Fala-se com um entusiasmo irreflectido da gloriosa Revolução Francesa, da regeneração de 1789, das grandes reformas operadas, da modificação das instituições: mentira! mentira!
Logo que as nossas ideias se modificam completamente, em consequência de certas observações, diante de uma realidade física, intelectual ou social, chamo revolução a esse movimento do espírito. Se só há ampliação ou simples modificação de ideias é o progresso. Assim, o sistema de Ptolomeu foi um progresso em astronomia, o de Copérnico foi revolucionário. Da mesma maneira em 1789 houve luta e progresso; não houve revolução. A análise das reformas experimentadas assim o demonstra.
O povo, tanto tempo vítima do egoísmo monárquico, julgou libertar-se definitivamente ao declarar que só ele era soberano. Mas o que era a monarquia? A soberania de um homem. O que é a democracia? A soberania do povo ou, melhor dizendo, da maioria nacional. Mas é sempre a soberania do homem posta no lugar da soberania da lei, a soberania da vontade em vez da soberania da razão, numa palavra, as paixões substituindo o direito. Sem dúvida que há progresso sempre que um povo passa do estado monárquico ao democrático porque, fraccionando o poder, oferecem-se maiores oportunidades de a razão se substituir à vontade; mas afinal não há revolução no governo visto que o principio continua a ser o mesmo. Ora hoje mesmo temos a prova de que não se pode ser livre na mais perfeita democracia (').

(1) Ver Tocqueville, De Ia Démocratie aux Êtats-Unis e Michel Chevalier, Lettres sur I'Amérique du Nord. Vê em Plutarco, Vie de Péricles, que as pessoas honestas de Atenas eram obrigadas a esconder-se para se Instruírem, receando que por tal facto as julgassem desejar a tirania.

Não é tudo: o povo-rei não pode exercer a soberania por si próprio; é obrigado a delegá-la nos fundamentos do poder: é o que não se cansam de lhe repetir os que procuram captar as suas boas graças. Que esses fundamentos do poder sejam cinco, dez, cem, mil, que importa o número e o nome? é sempre o governo do homem, o reino da vontade e do belo prazer. Pergunto: que inovação nos trouxe a pretensa revolução?
De resto sabe-se como foi esta soberania exercida, primeiro pela Convenção, depois pelo Directório, mais tarde confiscado pelo cónsul. Quanto ao imperador, o homem forte tão adorado e lamentado pelo povo, nunca quis sair dele; mas como se quisesse desafiá-lo na soberania ousou pedir-lhe o sufrágio, quer dizer, a abdicação dessa soberania inalienável, e obteve-o.
Mas afinal o que é a soberania? Diz-se que é o poder de fazer leis (1), portanto outro absurdo derivado do despotismo. O povo tinha visto os reis justificarem as suas ordens pela fórmula: porque é ela a nossa vontade; quis, por sua vez, experimentar o prazer de fazer leis. Desde há cinquenta anos que cria miríades, sempre, bem entendido, pela operação dos representantes. O divertimento está longe de chegar ao fim.
De resto a definição de soberania deriva, ela própria, da definição da lei. A lei, dizia-se, é a expressão da vontade do soberano: portanto, sob uma monarquia, a lei é a expressão da vontade do rei; numa república a lei é a expressão da vontade do povo. A parte a diferença do número de vontades os dois sistemas são perfeitamente idênticos: num e noutro o erro é igual: fazer da lei a expressão de uma vontade enquanto deve ser a expressão de um facto. Contudo seguiam-se bons guias: tomara-se por profeta o cidadão de Genebra e o Contrato Social por Alcorão.
A preocupação e o preconceito revelam-se a cada passo na retórica dos novos legisladores. O povo tinha sofrido grande quantidade de privações de privilégios; os seus representantes fizeram para ele a declaração seguinte: Todos os homens são iguais por natureza e à face da lei; declaração ambígua e redundante.

(1) «A soberania, segundo Toullier, é a omnipotência humana.» Definição materialista: se a soberania um direito, não uma força ou faculdade. E o que é a omnipotência humana?

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