terça-feira, fevereiro 09, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

Ora, o que temos nós direito de possuir? o que baste ao nosso trabalho e ao nosso consumo; a comparação que Cícero fez da Terra com o teatro prova-o. Depois disso cada um que se coloque no lugar à sua vontade, que se puder o embeleze e melhore, porque isso lhe é permitido: mas que a sua actividade nunca ultrapasse o limite que o separa de outro. A doutrina de Cícero pressupõe o direito à igualdade; a ocupação sendo uma pura tolerância e porque a tolerância não pode deixar de ser mútua, as posses são iguais.
Grócio serve-se da história; que maneira de raciocinar, procurar a origem de um direito que se diz natural noutra parte que não a natureza? Atentemos no método dos antigos: o facto existe portanto é necessário, portanto é justo, portanto os antecedentes também são justos. Todavia, vejamos.
«Na origem todas as coisas eram comuns e indivisíveis; eram património de todos...» Não vamos mais longe: Grócio conta-nos como essa comunidade primitiva acabou pela ambição e cupidez, como à idade do oiro sucedeu a Idade do ferro, etc. De maneira que a propriedade teria tido a sua origem primeiro na guerra e conquista, depois em tratados e contratos. Mas, esses tratados e contratos ou deram origem a partes iguais, em relação. à comunidade original, única regra de divisão que os primeiros homens conheceram, única forma de justiça que poderiam conceber; e então a questão da origem percebe como, logo de seguida, a igualdade desapareceu? Ou então esses tratados e contratos foram impostos pela força e recebidos pela fraqueza e nesse caso são nulos: o consentimento tácito da posteridade não lhes dá validade e diremos que se viva num estado permanente de fraude e inicuidade.
Nunca se perceberá que tendo sido a igualdade das condições um princípio da natureza porque se teria tornado, em seguida, num estado artificial. Como se teria dado uma tal depravação? Os instintos dos animais são tão inalteráveis como as distinções das espécies; supor na sociedade humana uma igualdade primitiva natural é, implicitamente, admitir que a actual desigualdade é uma derrogação feita à natureza da sociedade, facto que para os defensores da propriedade é inexplicável.
Mas eu concluo que se a Providência colocou os primeiros seres humanos numa condição igual, era uma indicação que lhes dava, um modelo que queria ver realizado noutras dimensões, como haviam desenvolvido e exprimido sob todas as formas o sentimento religioso que ela tinha posto na sua alma. O homem só tem uma natureza, constante e inalterável: segue-a de instinto, afasta-se por reflexão, volta pela razão; quem ousaria dizer que não estamos nesse retorno? Segundo Grócio, o homem saiu da igualdade; segundo eu o homem voltará à igualdade. Como saiu? Como voltará? procurá-lo-emos mais tarde.
Reid, tradução de Jouffroy, tomo VI, pág. 363:
«O direito de propriedade não é natural mas sim adquirido; não deriva da constituição do homem mas dos seus actos. Os jurisconsultos explicaram a sua origem de uma maneira satisfatória para todo o homem de bom senso, - A terra é um bem comum que a bondade do céu deu aos homens para gozarem a vida; mas compete-lhes a divisão desses bens e das suas produções: cada um recebeu do céu o poder e inteligência necessários para se apropriar de uma propriedade sem prejudicar ninguém.
«Os antigos moralistas compararam o direito comum de todo o homem às produções da terra com justiça, antes que ela fosse ocupada e tornada propriedade de outro, ao que se passa num teatro: cada um pode apoderar-se de um lugar vazio ao chegar e adquirir assim o direito de o conservar durante todo o espectáculo, mas ninguém tem o direito de desapossar os espectadores já sentados. - A Terra é um amplo teatro que o Todo-Poderoso dispôs com uma sabedoria e bondade infinitas, para o prazer e trabalho de toda a humanidade. Cada um tem o direito de se situar como espectador e desempenhar o seu papel como actor, mas sem incomodar os outros.»
Consequências da doutrina de Reid.
1. Para que a parte de que cada um se pode apropriar não prejudique ninguém, é preciso que seja igual ao quociente da soma dos bens a dividir pelo número dos comparticipantes;
2. Devendo o número de lugares ser sempre igual ao dos espectadores, não pode um espectador ocupar dois lugares, um actor desempenhar vários papéis ao mesmo tempo;
3. A medida que um espectador entra ou sai os lügares apertam-sé ou alargam-se para toda a gente, na mesma proporção: porque, diz Reid, o direito de propriedade não é natural mas adquirido; por conseguinte nada encerra de absoluto;

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