Tudo a que o homem podia chamar meu foi, no seu espírito, identificado à sua pessoa; considerou-o como sua propriedade, seu bem, uma parte de si próprio, um membro do seu corpo, uma faculdade da sua alma. A posse das coisas foi assimilada à propriedade das utilidades do corpo e do espírito; e sobre esta falsa analogia fundou-se o direito de propriedade, imitação da natureza pela arte, como tão elegantemente disse Destutt de Tracy.
Mas como é que este ideólogo tão subtil não reparou que o homem nem sequer é proprietário das suas faculdades? O homem tem poderes, virtudes, capacidadas; foram-ihe confiadas pela natureza para viver, conhecer, amar; não tem o domínio absoluto delas, é só usufrutuário; e esse usufruto não o pode exercer senão conformando-se com as prescrições da natureza. Se fosse senhor absoluto das suas faculdades não teria fome nem frio; comeria desmesuradamente a andaria por entre as chamas; levantaria montanhas, estaria em cem lugares num minuto, curar-se-ia sem remédios, só pela força da vontade e far-se-ia imortal. Diria: Quero produzir, e as suas obras, iguais ao seu ideal, seriam perfeitas; diria: Quero saber, e sabê-lo-ia; amo, e alegrar-se-ia. Mas quê! O homem não é senhor de si próprio e sê-lo-ia do que não lhe diz respeito! Que use as coisas da natureza, visto que não pode viver senão na condição de as usar: mas que perca as pretensões de proprietário e se lembre de que esse nome só por metáfora lhe foi dado.
Em resumo: Destutt de Tracy confunde, sob uma expressão comum, os bens exteriores da natureza e da arte e as faculdades do homem, chamando propriedades a uns e outros; e é por este equívoco que espera estabelecer o direito de propriedade de uma maneira inalterável. Mas de todas essas propriedades umas são inatas, como a memória, a imaginação, a força, a beleza, outras guaridas como os campos, as águas, as florestas. Na natureza os homens mais hábeis e fortes, quer dizer, favorecidos quanto a propriedades inatas, têm mais possibilidades de obter o exclusivo das propriedades adquiridas: ora foi para prevenir essa invasão e a guerra que se aproximava que se inventou a balança, uma justiça, e se fizeram convenções tácitas ou formais:foi portanto para corrigir, tanto quanto possível, a desigualdade das propriedades inatas pelo igualdade das propriedades adquiridas. Enquanto a partilha não for igual os comparticipantes conservam-se inimigos e as convenções têm que recomeçar. Assim, de um lado, estranheza, desigualdade, antagonismo, guerra, pilhagem, massacre; do outro, sociedade, igualdade, fraternidade, paz e amor: escolhamos.
Joseph Dutens, físico, engenheiro, geómetra mas muito pouco legisla e absolutamente nada filósofo é autor de uma Filosofia da economia polítlca, na qual julgou dever batalhar pela honra da propriedade. A sua metafísica parece pedida emprestada a Destutt de Tracy. Começa por esta definição de propriedade, digna de Sganarelle: «A propriedade é o direito pelo qual uma coisa pertence a alguém.» Tradução literal: A propriedade é o direito de propriedade.
Depois de alguns subterfúgios sobre a vontade, a liberdade, a personalidade; após ter distinguido propriedades imateriais naturais e propriedades materiais naturais, o que coincide com as propriedades inatas e adquiridas de Destutt de Tracy, Joseph Dutens concluiu com estas duas proposições gerais: 1.º - A propriedade é um direito natural e inalienável em cada homem; 2.º - A desigualdade das propriedades é um resultado necessário da natureza. Convertendo essas proposições numa outra, mais simples: Todos os homens têm um direito igual de propriedade desigual.
Censura a Sismondi ter escrito que a propriedade territorial não tem outro fundamento senão a lei e as convenções; e ele próprio diz, falando do respeito do povo pela propriedade, que «o seu bom senso lhe revela a natureza do contrato primitivo entre a sociedade e os proprietários».
Confunde a propriedade com a posse, a comunidade com a igualdade, o justo com o natural, o natural com o possível: tanto toma por equivalentes estas diferentes ideias, como parece distingui-Ias, de tal maneira que seria um trabalho infinitamente menor refutá-lo que compreendê-io. Atraiu-me sobremaneira o título do livro, Fiosofia da economia política, não encontrando mais do que ideias vulgares nas trevas do autor; justamente por isso não falarei delas.
Cousin, na sua Filosofia Moral, página 15, ensina-nos que toda a moral, toda a lei, todo o direito, nos são dados neste preceito: SER LIVRE, FICA LIVRE. Bravo, mestre! quero ficar livre se puder. Continua:
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