Assim, não receio ir, longe de mais afirmando que não está longe o tempo em que esta reserva tão admirada pelos filósofos, esta justa medida tão fortemente recomendada pelos doutores de ciências morais e políticas, não será já olhada senão como o vergonhoso carácter de uma ciência sem princípio e como a prova da sua rejeição. Em legislação e moral, assim como em geometria, desde que rigorosamente deduzidos, tornam-se leis os axiomas absolutos, as definições certas, as mais extremas consequências. Orgulho deplorável! Nada sabemos da nossa natureza e carregamo-la das nossas contradições e, no entusiasmo da nossa ignorância ingénua, ousamos gritar: «A verdade está na dúvida, a melhor definição é não definir nada. Um dia saberemos se essa desolante incerteza da jurisprudência advém do seu objecto ou dos nossos preconceitos; se para explicar os factos sociais não basta inverter a nossa hipótese, como fez Copérnico quanto ao sistema de Ptolomeu.
Mas que se dirá se eu mostrar imediatamente essa mesma jurisprudência argumentando sem cessar a igualdade para legitimar o domínio de propriedade? Que se terá a replicar?
§ 3.º - DA LEI CIVIL COMO FUNDAMENTO E SANÇÃO DA PROPRIEDADE
Pothier parece acreditar que a propriedade, assim como a realeza, é um direito divino. Faz remontar a origem até ao próprio Deus: Ab Jove principium. Eis como começa:
«Deus tem o domínio soberano do Universo e de todas as coisas que ele encerra: Domini est terra et plenitudo ejus, orbis terrarun et universi qui habitant in eo. - Foi pa-a o género humano que criou; a Terra e as criaturas que a habitam e lhes entregou um domínio subordinado ao seu: Estabeleceste-a por obra das tuas mãos: puseste a natureza sob os seus pés diz o Salmista. Deus fez esta doação ao género humano pelas palavras que dirigiu aos nossos antepassados, depois da criação: Cresçam e multipliquem-se e encham a Terra, etc.»
Depois deste magnífico preâmbulo quem não acreditaria que o género humano é como uma grande família, vivendo numa união fraterna, sob a guarda de um pai venerável? Mas, Deus! que irmãos inimigos! que pais desnaturados e filhos pródigos!
Deus entregou a terra ao género humano: então porque não recebi eu nada? Pôs a natureza sob os meus pés, e eu não tenho onde pousar a cabeça! Multipliquem-se disse, através do seu intérprete Pothier. Ah! sábio Pothier, isso é tão fácil de fazer como de dizer; mas então dêem ao pássaro musgo para o seu ninho.
«Tendo-se mulliplicado o género humano os homens partilharam a Terra entre si e a maior parte das coisas que havia à sua superfície: o que coube a cada um começou a pertencer-lhe: é a origem do direito de propriedade.»
Digam, digam, do direito de posse. Os homens viviam em comunidade, positiva ou negativa, pouco importa: não havia propriedade então, visto que nem sequer havia posse privada. Com o crescimento de população que delegou no trabalho o aumento da subsistência, conviu-se, formal ou tacitamente, isso em nada modifica a questão, que o trabalhador seria proprietário único do produto do seu trabalho: estabeleceu-se uma convenção puramente declaratória, e doravante ninguém podia viver sem trabalhar.
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