Assim a lei, constituindo a propriedade, não foi a expressão um facto psicológico, o desenvolvimento expressão de natureza, a aplicação de um princípio de uma lei de natureza, a aplicação de um princípio moral: criou, em toda a plenitude da palavra, um direito fora das suas atribuições; realizou uma abstracção, uma metáfora, uma ficção; e isso sem se dignar prever o que aconteceria, sem se ocupar dos inconvenientes, sem pensar se fazia bem ou mal: sancionou o egoísmo, subscreveu pretensões monstruosas; acolheu votos ímpios, como se pudesse tapar um abismo sem fundo e atafulhar o inferno. Lei cega, lei de homem ignorante, lei que não é uma lei; palavra do discórdia, mentira e sangue. Foi ela que, sempre ressuscitada, reabilitada, rejuvenescida, restaurada, reforçada, como a protecção das sociedades, perturbou a consciência dos povos, obscureceu o espírito dos mestres e determinou todas as catástrofes das nações. Foi ela que o cristianlsmo condenou mas que os seus ministros ignorantes de deificam, sem a curiosidade de estudar a natureza e o homem, de outro modo incapazes de entender as Escrituras.
Mas, enfim, que direcção seguira a lei ao criar o domínio de propriedades. Que princípio a dirigia? Qual era a regra?
Isto ultrapassa toda a crença: era a igualdade.
A agricultura foi o fundamento da posse territorial e a causa ocasional da propriedade. Nada justificava assegurar ao trabalhador o fruto do seu trabalho se não se lhe assegurasse, ao mesmo tempo, o meio de produzir: para precaver o fraco contra as investidas do forte, para suprimir as espoliações e as fraudes, houve necessidade de estabelecer entre os possessores linhas de demarcação permanentes, obstáculos intransponíveis. Todos os anos se via multiplicar o povo e crescer a avidez dos colonos: julgou-se pôr travão à ambição marcando fronteiras contra as quais a ambição se despedaçasse. Assim o solo foi apropriado por uma necessidade de igualdade, para a segurança pública e para o gozo pacífico de cada um. Claro que a partilha nunca foi geograficamente igual; uma quantidade de direitos, alguns fundados na natureza mas mal interpretados, infelizmente ainda mais mal aplicados, as sucessões, as doações, as trocas; outros, como os privilégios de nascença e dignidade, criações ilegítimas da ignorância e da força brutal, foram causas que impediram a igualdade absoluta.
Mas imperou o mesmo principio: a igualdade tinha consagrado a povo, a igualdade consagrou a propriedade.
O trabaihador precisava de um campo para semear todos os anos: que expediente mais cómodo e simples para os bárbaros que designar para cada um o território fixo e inalienável, em vez de todos os anos voltarem a disputar-se e a mudar continuamente de território, com a casa, a mobília, a família?
Era preciso que o guerreiro, ao voltar de uma expedição, reencontrasse as suas coisas: passou então a ser costume conservar-se a propriedade em sua intenção, nudo animo; que não se perdesse senão com o expresso consentimento do proprietário.
Era preciso que a igualdade das partilhas se conservasse de uma geração para outra sem se ser obrigado a renovar a distribuição das terras quando da morte de cada família: pareceu portanto natural e justo que as crianças e os pais sucedessem ao seu autor segundo o grau de consanguinidade ou afinidade que os ligava ao defunto. Daí, em primeiro lugar, o costume feudal e patriarcal de só reconhecer um herdeiro; depois, por uma aplicação contrária ao princípio de igualdade, à admissão de todas as crianças à sucessão do pai e, entre nós, ainda muito recentemente, a abolição definitiva do direito do mais velho.
Mas que há de comum entre esses esquemas grosseiros de organização instintiva e a verdadeira ciência social? Como é que esses homens, que nunca tiveram a menor noção de estatística, cadastro, economia política, nos poderiam dar princípios de legislação?
A lei, diz um jurisconsulto moderno, é a expressão de uma necessidade social, a declaração de um facto: o legislador, não a faz, descreve-a. Esta definição não é exacta: a lei é a regra segundo a qual as necessidades sociais devem ser satisfeitas: o povo não a vota, o legislador não a exprime: o sábio descobre-a e formula-a. Mas a lei, tal como Comte lhe consagrou metade de um volume para a definir, não podia ter, enfim, por origem senão a expressão de uma necessidade e a indicação dos meios para a suprir; e até esse momento ela não foi outra coisa. Os legistas, com uma fidelidade de máquinas, obstinados inimigos de toda a filosofia, sempre a olharam como última palavra da ciência tomando-a num desejo irreflectido de homens de boa fé mas pouca previsão.
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