quarta-feira, fevereiro 24, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

Cujus est solum, ejus est usque ad coelum. Ora se o uso da água, do ar a do fogo exclui a propriedade deve-se passar o mesmo quanto ao uso do solo: este encadear de consequências parece ter sido pressentido por Ch. Comte, no seu Traité de Ia propriété, capítulo 5.
«Um homem que fosse privado do ar atmosférico durante alguns minutos, deixaria de existir e uma privação parcial causar-lhe-ia grandes sofrimentos; uma privação parcial ou total de alimentos produziria efeitos análogos, se bem que menos rápidos; dar-se-ia o mesmo, pelo menos em certos climas, quanto à anulação de qualquer espécie de vestuário e abrigo... Portanto, para se conservar, o homem precisa de se apropriar continuamente de coisas de diversas espécies. Mas essas coisas não existem nas mesmas proporções: algumas, tais como a luz dos astros, o ar atmosférico, a água dos mares, existem em quantidade tão grande que os homens não podem provocar-lhes um aumento ou diminuição sensíveis; cada um pode apropriar-se tanto quanto precisar sem prejudicar em nada o gozo dos outros, sem lhes causar o menor prejuízo. As coisas desta espécie são, de certa maneira, propriedade comum do género humano; o único dever que se impõe a cada um diante desta realidade é o de não prejudicar em nada o gozo dos outros.»
Acabemos a enumeração começada por Ch. Comte. Um homem a quem fosse proibido passar pelas estradas, parar no campo, abrigar-se nas cavernas, acender lume, apanhar bagas selvagens, coIher ervas e cozé-las num bocado de terra, esse homem não poderia viver. Assim a terra, como a água, o ar e a luz, é um objecto de primeira necessidade que cada um deve usar livremente, sem prejudicar ninguém; então porque é que a terra foi apropriada? A resposta de Ch. Comte é curiosa: Say pretendia que era por não ser fugitiva; Ch. Comte assegurava que era por não ser infinita. A terra é uma coisa limitada; portanto, segundo Ch. Comte, deve ser apropriada. Parece que ele devia dizer, ao contrário: portanto, não deve ser apropriada. Porque se se apropriarem de uma quantidade qualquer de água ou luz não pode resultar daí prejuízo para ninguém, visto que sobra sempre muito: quanto à terra é outra coisa. Apodere-se quem quiser ou puder dos ralos do sol, da brisa que passa e das ondas do mar;
permito o perdoo-Ihe a sua má fé: mas ao o homem pretender transformar o seu direito de posse territorial em direito de propriedade, declaro-lhe guerra e combato-o sem descanso.
A argumentação de Ch. Comte prova contra a sua tese. «Entre as coisas necessárias à nossa conservação, diz ele, há um certo número que existe em tão grande quantidade que é inextinguível; outras que existem em quantidade menos considerável e que só podem satisfazer as necessidades de um certo número de pessoas. AqueIas dizem-se comuns, estas particulares.»
Não está bem raciocinado: a água, o ar e a luz são coisas comuns não porque inextinguíveis mas porque indispensáveis e de tal maneira indispensáveis que por isso a natureza parece as criou em quantidade quase infinita, a fim de que a sua imensidade as preserve de toda a apropriação. Paralelamente a terra é uma coisa indispensável à nossa conservação, por consequéncia coisa comum, por consequência coisa não susceptível de apropriação, mas a terra é muito menos extensa que os outros elementos, portanto o uso deve ser regulado não em benefício de alguns mas no interesse e para segurança de todos. Em duas palavras, a igualdade dos direitos é provada pela igualdade das necessidades; ora a igualdade dos direitos, se a coisa é limitada, não pode ser realizada senão pela igualdade da posse: é uma lei agrária que se encontra no fundo dos argumentos de Ch. Comte.
De qualquer ângulo que se encare esta questão da propriedade, desde que se queira aprofundar chega-se à igualdade. Não insistirei mais sobre a distinção das coisas que podem ou não ser apropriadas; quanto a isto economistas e jurisconsullos disputam as tolices. O Código Civil, depois de ter definido a propriedade, cala-se sobre as coisas susceptíveis ou não de apropriação e ao falar das que estão no comércio é sempre sem nada determinar ou defenir. Todavia não faltaram as luzes; são máximas triviais, como esta: Ad reges potestas omnium pertinet, ad singulos proprietas. Omnia rex Imperio possidet, simula dominio. A soberania social oposta à propriedade indivldual não lhes parece uma profecia da igualdade, um oráculo republicano? Os próprios exemplos se apresentam em quantidade; outrora os bens da Igreja, os domínios da coroa, os feudos da nobreza eram inalteráveis e imprescritíveis.
Se, em vez de abonar esse privilégio, a Constituinte o tivesse estendido a cada cidadão; se tivesse declarado que o direito ao trabalho, assim como à liberdade nunca se pode perder, a revolução estava consumada desde esse momento, não teríamos que fazer mais que um trabalho de aperfeiçoamento.

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