quinta-feira, fevereiro 25, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

§ 2.º - O CONSENTIMENTO UNIVERSAL NÃO JUSTIFICA A PROPRIEDADE

No texto de Say que já transcrevemos não se percebe bem se este autor faz depender o direito de propriedade da qualidade não fugitiva do solo, se do consentimento que pretende ter sido dado por todos os homens a esta apropriação. A construção da sua frase é tal, que apresenta igualmente um ou outro sentido, ou mesmo os dois simultâneamente; de maneira que se poderia sustentar que o autor quis dizer: Resultando primeiramente o direito de propriedade do exercício da vontade, a fixadez do solo deu-lhe ocasião para se aplicar à terra e o consentimento universal sancionou depois esta aplicação.
Fosse como fosse os homens podiam legitimar a propriedade pelo acordo mútuo? Nego-o. Um tal contrato, quer tivesse por redactores Grócio, Montesquieu e J.-J. Rousseau, quer incluísse assinaturas de qualquer humano, seria nulo de direito e o acto ilegal. O homem não pode renunciar ao trabalho mais que à liberdade; ora, reconhecer o direito de propriedade territorial é renunciar ao trabalho, visto que é abdicar do meio, transigir de um direito natural e renegar a qualidade de homem.
Mas quero admitir que esse consentimento, tácito ou formal, tenha existido; o que resultaria? Aparentemente, as renúncias foram recíprocas: não se abandona um direito sem se obter um equivalente em troca. Caímos assim na igualdade, condição sine qua non de toda a apropriação; de maneira que, depois de se ter justificado a propriedade pelo consentimento universal, quer dizer, pela igualdade, é-se obrigado a justificar a desigualdade das condições pela propriedade. Nunca se sairá deste círculo. Com efeito, nos termos do pacto social, se a propriedade tem por condição a igualdade, a partir do momento em que essa igualdade já não existe o pacto desfaz-se e toda a propriedade se torna usurparão. Não se ganha nada, pois, com o pretenso consentimento de todos os homens.

§ 3.º - A PRESCRIÇÃO NUNCA PODE SER APLICADA À PROPRIEDADE

O direito de propriedade foi a causa principal do mal na terra, o primeiro anel da longa cadeia de crimes e misérias que o género humano arrasta desde a nascença; a mentira das prescrições é o encanto funesto lançado sobre os espíritos, é a palavra de morte soprada às consciências para suster o progresso do homem na verdade e instigar a idolatria do erro.
O Código define a prescrição: «Um meio de adquirir e de se libertar pela passagem do tempo.» Aplicando esta definição às ideias e às crenças, pode-se servir da palavra prescrição para designar o favor constante apenso às velhas superstições, qualquer que seja o objecto; é esta oposição, tantas vezes furiosa e sangrenta que, em todas as épocas, acolhe novas luzes e faz do sábio um mártir. Nenhum princípio, nenhuma descoberta, nenhum pensamento generoso, deixou de encontrar, quando da sua entrada no mundo, um dique formidável de opiniões adquiridas e como que uma conjuração de todos os preconceitos antigos. Prescrições contra a razão, prescrições contra os factos, prescrições contra toda a verdade anteriormente desconhecida, eis o sumário da filosofia do statu quo e o símbolo dos conservadores de todos os séculos.
Quando a reforma evangélica chegou, já existia prescrição a favor da violência, do deboche e do egoísmo; quando Galileu, Descartes, Pascal e os seus discípulos renovaram a filosofia e as ciências, já havia prescrição para a filosofia de Aristóteles; quando os nossos pais de 89 pediram a liberdade e a igualdade havia prescrição para a tirania e o privilégio. «Sempre houve proprietários, sempre haverá»: é com esta máxima profunda, último esforço do egoísmo, que os defensores da desigualdade social julgam responder aos ataques dos seus adversários, sem dúvida imaginando que as ideias prescrevem como as propriedades.
Iluminados hoje pela marcha triunfal das ciências, instruídos pelos sucessos mais gloriosos, desafiando as nossas opiniões, acolhemos com fervor e entusiasmo o observador da natureza que, através de mil experiências, apoiado na mais profunda análise, prossegue um princípio novo, uma lei desconhecida até então.

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