quinta-feira, fevereiro 11, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

Aceitemos este sistema, verdadeiro ou falso não interessa: Destutt de Tracy náo escapará à igualdade. Segundo esta hipótese os homens, enquanto no estado de estranhos nada se devem; todos têm o direito de satisfazer as suas necessidades sem se preocupar com as dos outros, por consequéncia, têm o direito de exercer o seu poder contra a natureza, cada um segundo a possibilidade das suas forças e faculdades. Daí, por uma ilação necessária, a maior desigualdade de bens entre as pessoas. A desigualdade das condições toma, portanto, o carácter próprio da selvajaria: é precisamente o inverso do sistema de Rousseau. Continuemos:
«Só começa a haver restrições a esses direitos e a esse dever no momento em que se estabelecem convenções, tácitas ou formais. Só aí se encontra a origem da justiça e da injustiça, quer dizer, da balança entre os direitos de um e os direitos de outro, que eram necessariamente iguais até esse instante.»
Entendemos: sendo os diireitos iguais isso significa que cada um tinha o direito de satisfazer as suas necessidades sem nenhuma consideração pelas necessidades de outrem; noutros termos, que todos tinham igualmente o direito de se incomodarem, que não havia outro direito além da esperteza ou da força. Aliás não só a guerra e a pilhagem prejudica mas também a antecipação e a apropriação. Ora foi para abolir esse direito igual de empregar a força e a astúcia, esse direito igual de se fazer mal, única fonte de desigualdade dos bens e males, que se começaram a fazer convenções tácitas ou formais e se estabeleceu uma balança: portanto essas convenções e essa balança tinham por objectivo assegurar a todos igualdade de bem-estar; assim, pela lei dos contrários, se a estranheza é o princípio da desigualdade, a sociedade tem a igualdade por resuItado necessário. A balança social é o nivelamento do forte e do fraco; porque enquanto não são iguais, são estranhos; não formam uma aliança, conservam-se inimigos. Assim, se a desigualdade de condições é um mal necessário, teremos a estranheza, visto que sociedade e desigualdade implicam contradição; portanto, se o homem é feito para a sociedade feito para a igualdade: o rigor desta consequência invencível.
Sendo assim, porque é que a desigualdade aumenta continuamente desde o estabecimento da balança?
Como é que o reino da justiça continua a ser o da desadaptação? Que responde Destutt de Tracy?
«Necessidade e meios, direitos e deveres, derivam da faculdade de querer. Se o homem não quisesse nada não teria nada disso. Mas ter necessidades e meios, direitos e deveres, é ter, é possuir alguma coisa. São espécies de propriedades, para tomar a palavra na sua verdadeira acepção: são coisas que nos pertencem.»
Equívoco indigno, que a necessidade de generalizar não justifica. A palavra propriedade tem dois sentidos: 1.º - Designa a qualidade pela qual uma coisa vale por si e pela virtude que lhe é própria e a distingue especialmante: é nesse sentido que se fala das propriedade; do triângulo ou dos números, a propriedade do íman, etc. 2.º - Exprime o direito dominial de um ser inteligente e livre sobre uma coisa; é nesse sentido que a tomam os jurisconsultos. Assim na frase: O ferro adquire a propriedade do diamante, a palavra propriedade não revela a mesma ideia que nesta outra frase: Adquiri a propriedade deste diamante. Dizer a um infeliz que tem propriedades porque tem braços e pernas; que a fome que o atormenta e a faculdade de dormir ao ar livre são propriedades, é brincar com as palavras e aliar-lhes ironia e desumanidade.
«A ideia de propriedade só se pode basear na ideia de personalidade. Desde que nasce a ideia de propriedade, ela brota necessária e inevitavelmente em toda a sua plenitude. Desde que um indivíduo conhece o seu eu, a sua personalidade moral, a sua capacidade de gozar, sofrer, agir, necessariamente vê também que esse ou é proprietário exclusivo do corpo que anima, dos órgãos, das suas forças e faculdades, etc. Era preciso que houvesse a propriedade natural e necessária, visto que as há artificiais e convencionais: porque não pode haver nada na arte que não tenha o seu princípio na natureza.»
Admiremos a boa fé e a razão dos filósofos. O homem tem propriedades, quer dizer, na verdadeira acepção do termo, faculdades; tem a propriedade, quer dizer, na segunda acepção, o domínio: portanto tem a propriedade da propriedade de ser proprietário. Como eu coraria de trazer a lume tais tolices se não considerasse aqui senão a autoridade de Destutt de Tracy! Mas esta confusão pueril gerou-se em todo o gênero humano, na origem das sociedades e das línguas, logo que nasceram a metafísica a a dialéctica, com as primeiras ideias e as primeiras palavras.

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