Mas seria infiel ao meu método a o leitor teria o direito de mo acusar de charlatanismo e mentira se não tivesse, nada de melhor a dizer-lhe no que respeita à prescrição. Anteriormente fiz ver que a apropriaçáo da terra é ilegal o que, supondo que o não fosse, não se seguiria senão uma coisa, a igualdade das propriedades; em seguida demonstrarei que o consentimento universal nada prova a favor da propriedade e que se provasse alguma coisa seria ainda a igualdade das propriedades. Resta-me demonstrar que a prescrição, se pudesse ser admitida, pressuporia a igualdade das propriedades.
Esta demonstração não será longa nem difícil: basta lembrar os motivos que levaram à introdução da prescrição.
«A prescrição, diz Dunod, parece repugnar à equidade natural, que não permite que se desaposse alguém do seu bem contra a sua vontade e que um enriqueça com a perda do outro. Mas como aconteceria muitas vezes, se não houvesse prescrição, que um comprador de boa fé fosse desapossado depois de uma longa posse; mesmo que o tivesse adquirido do verdadeiro dono ou que se tivesse libertado de uma obrigação por vias legítimas vindo a perder o seu título ficaria sujeito a ser privado, o bem público exigia que se fixasse um termo para além do qual já não fosse permitido inquietar os possuidores e procurar direitos desde há muito negligenciados... Portanto o direito civil não fez mais do que aperfeiçoar o direito natural e suprir o direito das pessoas, pela maneira como regulou a prescrição; e como se baseia no bom público, que é sempre preferível ao dos particulares, bono publico usucapio introducta est, deve ser tratado favoravelmente quando se encontra acompanhado das condições exigidas pela lei.»
Toullier,Direito Civil: «Para não deixar a propriedade das coisas numa incerteza demasiado longa, prejudicial ao bem público, perturbando a paz das famílias e a estabilidade das transacções sociais, as leis fixaram um prazo passado o qual recusam admitir a reivindicação e dão à posse a sua antiga prerrogativa, reunindo-lhe a propriedade.»
Cassiodoro dizia da propriedade que ela é o único porto seguro no meio das tempestades das rábulas e da agitação da cupidez:
Hic unus inter humanas procellas portus, quem si homines fervida voluntate praeteri; in undosis jurgiis errabunt.
Assim, segundo os autores, a prescrição é um meio de ordem pública, uma restauração, em certos casos, do modo primitivo de adquirir uma ficção da lei civil, a qual tira toda a força da necessidade de concluir diferandos que, de outra maneira, não poderiam ser regulados. Porque, como diz Grócio, o tempo não tem nenhuma virtude efectiva por si próprio; tudo acontece no tempo mas nada se faz pelo tempo; a prescrição, ou direito de adquirir pelo correr do tempo é, portanto, uma ficção da lei, convencionalmente adoptada.
Mas toda a propriedade começou necessariamente pela prescrição ou, como diziam os latinos, pelo usucapião, quer dizer, pela posse contínua: pergunto pois, em primeiro lugar, como se pôde transformar a posse em propriedade pelo correr do tempo? Tornem a posse tão longa quanto quiserem; acumulem os anos e os séculos, não farão nunca com que a duração, que por si própria não cria nada, não muda nada, não modifica nada, possa transformar o usufrutuário em proprietário. A lei civil ao reconhecer a um possuidor de boa fé, estabelecido há largos anos no seu gozo, o direito de não poder ser desapossado, não faz mais que confirmar um direito já respeitado e a prescrição, assim aplicada, significa simplesmente que a posse começada há vinte, trinta ou cem anos será mantida pelo ocupante. Mas logo que a lei declara que o lapso de tempo transforma o possuidor em proprietário supõe que um direito pode ser criado sem uma causa que o produza; muda a qualidade do sujeito sem motivo; estatui sobre o que não está em litígio; sai das suas atribuições. A ordem pública e a segurança dos cidadãos pediam apenas a garantia das posses; porque criou a lei propriedades? A prescrição era como uma segurança do futuro; porque é que a lei fez dela um princípio de privilégio?
Assim a origem da prescrição é idêntica à da própria propriedade; e visto que esta só se pôde legitimar pela condiçáo formal de igualdade, a prescrição também é uma das mil formas que a necessidade de conservar essa preciosa igualdade revestiu. E isto não é uma indução vã, uma consequência tirada rápidamente: a prova está escrita em todos os códigos.
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