Com efeito se todos os povos reconheceram, por um instinto de justiça e conservação, a utilidade e a necessidade da prescrição e se o seu desejo foi velar assim pelos interesses do possuidor, podiam fazer alguma coisa pelo cidadão ausente, afastado da família e da pátria pelo comércio, a guerra ou o cativeiro, fora do estado de exercer qualquer acto de posse? Não. Também na própria altura em que se introduzia a prescrição nas leis se admitia que a propriedade se conserva pela vontade, nudo animo. Ora se a propriedade se conserva pela vontade, se não pode perder-se senão pela vontade do proprietário, como é que a prescrição pode ser útil? Como é que a lei ousa presumir que o proprietário, que conserva unicamente pela intenção, decidiu abandonar o que deixou prescrever? que lapso de tempo pode autorizar uma tal conjectura? e com que direito a lei puniria a ausência do proprietário despojando-o do seu bem? Pois quê! demonstrámos há pouco que a prescrição e a propriedade eram coisas idênticas e eis que agora achamos que são coisas que se destroem mutuamente.
Grócio, que sentia a dificuldade, responde de maneira tão singular que merece ser transcrita: Bene sperandum de hominibus, ac propterea non putandum eos hoc esse animo ut, rei caducae causa, hominem alterum velint in perpetuo peccato versari, quod evitara soepe non poterit sine tali derelictione: «Onde está o homem, diz ele, de alma tão pouco cristã que, por uma miséria, quisesse eternizar o pecado de um possuidor, o que infalivelmente aconteceria se não consentisse em abandonar o seu direito?» Por Deus! eu sou esse homem. Deveriam arder até ao julgamento um milhão de proprietários, ponho-lhes sobre a consciência a parte que me roubaram dos bens deste mundo. A esta poderosa consideração acrescenta Grócio uma outra: é mais seguro abandonar um direito litigioso do que litigar, perturbar a paz das fiações e atiçar o fogo da guerra civil. Aceito, se quiserem, essa razão desde que me indemnizem; mas se essa indemnização me for recusada que me importa a mim, proletário, o repouso a a segurança dos ricos? Preocupo-me tanto com a ordem pública como com a salvação dos proprietários: peço para viver trabalhando, senão morrerei combatendo.
A prescrição é uma contradição da propriedade, apesar de todas e quaisquer subtilezas empregues; ou antes, a prescrição e a propriedade são duas formas de um único princípio, mas duas formas que reciprocamente se corrigem; pretender-se conciliá-las não foi um dos menores equívocos da jurisprudência antiga e moderna. Com efeito, não vemos no estabelecimento da propriedade mais que o desejo de garantir a cada um a sua parte de terra e o seu direito ao trabalho; na separação da propriedade e da posse mais que um asilo aberto aos ausentes, aos órfãos, a todos os que não podem conhecer ou defender os seus direitos; na prescrição apenas um meio, quer de rejeitar as pretensões injustas e as invasões quer de acabar com as discussões suscitadas pelas transplantações de possuidores e nessas diversas formas da justiça humana, reconheceremos os esforços espontâneos da razão vindos em auxílio do instinto social; veremos, nessa reserva de todos os direitos, o sentimento de igualdade, a tendência constante para o nivelamento. E, usando da reflexão e do sentido íntimo encontraremos, no próprio exagero dos princípios, a confirmação da nossa doutrina: se a igualdade das condições e a associação universal não foram realizadas mais cedo foi porque o génio dos legisladores e o falso saber dos juizes criaram durante um tempo, obstáculos ao bom senso popular: e que, enquanto um clarão de verdade iluminava as sociedades primitivas, as primeiras especulações dos chefes não podiam engendrar mais que trevas.
Depois das primeiras convenções, depois dos esboços de leis e constituições que foram a expressão das primeiras necessidades, a missão dos homens de leis devia ser a de reformar o que estava mal na legislação; de completar o que se conservava defeituoso; de conciliar, por definições melhores, o que parecia contraditório: em vez disso limitaram-se ao sentido literal das leis, contentando-se com o servil papel de comentadores. Tomando por axiomas da verdade eterna e indefectível as aspirações de uma razão necessáriamente fraca e falsa, arrastados pela opinião geral, subjugados pela religião dos textos, sempre tomaram por princípio, à semelhança dos teólogos, que é infalivelmenle verdadeiro o que é admitido universalmente, em toda a parte e sempre, quod ab omnibus, quod obique, quod semper, como se uma crença geral mas espontânea provasse mais que uma aparência geral.
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