Como rejeitava o sistema da ocupação e, aliás, como sabia que o trabalho não faz o direito sem a prévia permissão de ocupar, viu-se obrigado a atribuir essa permissão à autoridade do govemo, facto significativo que a propriedade tem por princípio a soberania do povo ou, noutros termos, o consentimento universal. Já discutimos esse preconceito.
Dizer que a propriedade é filha do trabalho, depois dar ao trabalho uma concessão por meio do exercício é se não me engano, formar um círculo vicioso. As contradições vão aparecer.
«Um determinado espaço de terra não pode produzir alimentos senão para o consumo de um homem durante um dia: se o possuidor, pelo trabalho, descobre maneira de o fazer produzir para dois dias o valor duplica. Esse novo valor é obra sua, criação sua; não foi roubado a ninguém: é propriedade sua.»
Defendo o princípio de que o possuidor seja pago pelo trabalho com a colheita dupla, mas que não adquira nenhum direito sobre os fundos. Que o trabalhador faça seus os frutos, concordo; mas não compreendo que a propriedade dos produtos implique a da matéria. Na mesma costa, o pescador que saiba pescar mais peixe que os outros torna-se, por essa habilidade, proprietário das paragens onde pesca? A destreza de um caçador alguma vez foi olhada como um título de propriedade sobre a caça de uma região? A semelhança é perfeita: o cultivador diligente encontra a recompensa numa colheita abundante e de melhor qualidade; se fez melhoramentos no solo tem direito a uma preferência como possuidor; nunca de maneira nenhuma, se pode admitir que apresente a sua habilidade de cultivador como um título de propriedade do solo que cultiva.
Para transformar a posse em propriedade é preciso mais que o trabalho, senão o homem deixaria de ser proprietário logo que parasse de ser trabalhador; ora o que faz a propriedade, segundo a lei, é a posse imemorial, incontestada, numa palavra, a prescrição; o trabalho é apenas o sinal sensível, o acto material pelo qual a ocupação se manifesta. Portanto, se o cultivador continua proprietário depois de ter deixado de trabalhar e produzir, se a posse, primeiro concedida, depois tolerada, se torna, por fim, inalienável, isso foi um benefício da lei civil em concordância com o princípio de ocupação. Esta realidade é de tal maneira verdadeira que não há um contrato de venda, um arrendamento ou aluguer, uma constituição de renda que a não admita. Não citarei mais que um exemplo.
Como se avalia um imóvel? pelo produto. Se uma terra rende 1.000 francos a 5 por cento, essa terra passará a valer 20.000, a 4 por cento 25.000, etc; noutros termos, após vinte e vinte o cinco anos, o preço da terra terá sido reembolsado pelo que a adquiriu. Portanto, se depois de um lapso de tempo o preço de um imóvel está integralmente pago, porque continua o comprador a ser proprietário? Por causa do direito de ocupação, sem o qual toda a venda seria uma retrovenda.
O sistema de apropriação pelo trabalho está, pois, em contradição com o Código; e sempre que os adeptos desse sistema se pretendem servir dela para explicar as leis estão em contradição consigo próprios.
«Se os homens conseguem fertilizar uma terra que não produzia nada ou que até era prejudicial, como alguns pântanos, criam assim a propriedade completa.» Para quê engrandecer a expressão e jogar aos equívocos? Criam a propriedade completa; quer dizer que geram uma capacidade produtora que não existia antes; mas essa capacidade não pode ser criada sem uma matéria que seja o substracto. A substância do solo continua a mesma; só as qualidades foram modificadas. O homem criou tudo excepto a própria matéria. Ora é dessa matéria que eu admito não haver mais do que a posse e o uso, sob a condição permanente do trabalho, abandonando-lhe, por um momento, a propriedade das coisas que produziu.
Eis, portanto, a resolução de um primeiro ponto: a propriedade do produto, mesmo que seja concedida, não implica a propriedade do instrumento; isto parece não precisar de uma demonstração mais significativa. Há identidade entre o soldado possuidor das armas, o pedreiro possuidor dos materiais que lhe confiam, o pescador possuidor das águas, o caçador possuidor dos campos e bosques e o cultivador possuidor das terras: se o quiserem, todos serão proprietários dos produtos; nenhum será proprietário dos instrumentos. O direito ao produto é exclusivo, jus in re; o direito ao instrumento é comum, jus ad rem.
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