quarta-feira, março 24, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

PRIMEIRA PROPOSIÇÃO

A propriedade é impossível porque do nada exige qualquer coisa

O exame desta proposição é semelhante ao da origem da renda da terra, tão discutida pelos economistas. Quando li o que a maior parte deles escreveu sobre isso, não pude abster-me de um sentimento de desprezo e cólera, à vista desse amontoado de disparates onde o odioso se disputa ao absurdo. Seria a história do elefante na Iua se não fosse a atrocidade das consequências. Procurar uma origem racional e legítima naquilo que não é senão roubo, fraude e rapina, tal devia ser o cúmulo da loucura proprietária, o mais alto grau de escuridão onde a perversidade do egoísmo pôde lançar espíritos, aliás esclarecidos.
«Um cultivador, diz Say, é um produtor de trigo que entre os utensílios de que se serve para modificar a matéria donde extrai o trigo, emprega um grande utensílio a que chamamos um campo. Quando não é o proprietário do campo mas apenas o rendeiro é um utensílio de que ele paga o serviço produtivo ao proprietário. o rendeiro faz-se reembolsar pelo comprador, este por um outro, até que o produto chegue ao consumidor, que reembolsa o primeiro adiantamento acrescido de todos por meio dos quais o produto chegou ate ele.»
Deixemos de lado os adiantamentos subsequentes pelos quais o produto chega ao consumidor e, neste momento, ocupemo-nos apenas do primeiro de todos, a renda paga ao proprietário pelo rendeiro. Pergunta-se em que se baseia o proprietário para se fazer pagar essa renda.
Segundo Ricardo, Maccullock e Mill, a renda propriamente dita não é outra coisa senão o excedente do produto da terra mais fértil sobre o produto das terras de qualidade inferior; de maneira que a renda só começa a ter lugar sobre as primeiras quando se é obrigado a recorrer à cultura das segundas, pelo crescimento da população.
É difícil encontrar nisto algum sentido. Como pode resultar das diferentes qualidades do terreno um direito sobre o terreno?
Como é que as variedades de humo engendrariam um princípio de legislação e política? Esta metafísica é para mim tão subtil ou tão espessa que quanto mais penso nela mais me perco. Seja a terra A capaz de alimentar 10.000 habitantes e a terra B somente capaz de alimentar 9.000, ambas de igual extensão: logo que, pelo crescimento do seu número, os habitantes da terra A se virem obrigados a cultivar a terra B, os proprietários dos bens de raiz da terra A obrigam a pagar aos rendeiros dessa terra uma renda calculada na relação de 10 para 9. Eis o que dizem Ricardo, Maccullock e Mill, segundo entendi. Mas se a terra A alimentasse tantos habitantes quantos pudesse conter, quer dizer, se os habitantes da terra A tivessem apenas, em virtude do seu número, o que lhes fosse necessário para viver, como poderiam pagar uma renda?
Se se limitassem a dizer que a diferença das terras deu ocasião à renda mas que ela não tinha sido a sua causa, teríamos recolhido desta simples observação um ensinamento precioso; que o estabelecimento da renda teria tido o seu princípio no desejo da igualdade. Com efeito, se o direito de todos os homens à posse das terras boas fosse igual ninguém poderia ser obrigado a cultivar as más sem indemnização. A renda teria sido, segundo Ricardo, Maccullock e Mill, uma indemnização tendente a compensar os proveitos e as penas. Esse sistema de igualdade prática é mau, é preciso concordar com isso; mas enfim, talvez a intenção fosse boa: que consequência Ricardo, Maccullock e Mill podiam deduzir daí a favor da propriedade? A teoria volta-se contra eles próprios e destrói-os.
Malthus pensa que o principio da renda está na faculdade que a terra tem de fornecer mais substâncias que as que fazem falta para alimentar os homens que a cultivam. Perguntarei a Malthus porque teria fundamentado o êxito do trabalho um direito na participação dos produtos em proveito da ociosidade?
Mas o senhor Malthus engana-se no enunciado do facto de que fala: sim, a terra tem a faculdade de fornecer mais substâncias do que as que são precisas para os que a cultivam, se por cultivadores só se entender os rendeiros. O alfaiate também faz mais fatos do que os que usa e o marceneiro mais móveis do que os que lhe fazem falta.

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