quinta-feira, maio 06, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

Se, de repente, ao instinto cego mas convergente e harmónico de um enxame de abelhas se viesse juntar a reflexão e o raciocínio, a pequena sociedade não poderia subsistir. Primeiro, as abelhas não deixariam de experimentar algum novo processo industrial, por exemplo, para fazer os seus alvéolos redondos ou quadrados. Os sistemas e as invenções seguir-se-iam até que uma longa prática, com a ajuda de uma sábia geometria, tivesse demonstrado que a figura do hexágono é a mais vantajosa. Depois haveria insurreições: dir-se-ia aos zangãos para se abastecerem, às rainhas para trabalharem, a inveja cresceria entre as operárias, rebentariam discórdias, dentro em pouco cada um quereria produzir por sua própria conta, finalmente a colmeia seria abandonada e as abelhas pereceriam. O mal, como uma serpente escondida sob as flores, ter-se-ia introduzido na república melífera pelas próprias vias que lhe deviam trazer a glória, pelo raciocínio e a razão.
Assim o mal moral, quer dizer, na questão que nos ocupa, a desordem na socedade explica-se naturalmente pela nossa faculdade de reflectir. A miséria, os crimes, as revoltas, as guerras tiveram por mãe a desigualdade das condições, que foi filha da propriedade, que nasceu do egoísmo, que foi engendrada pelo sentido privado, que descende em linha recta da autocracia da razão. O homem não começou nem pelo crime fiem pela selvajaria, mas pela infâncía, a ignorância, a iexperiência. Dotado de instintos imperiosos mas colocados sob a condição do raciocínio, primeiro reflecte pouco e raciocina mal; depois, à força de desilusões, pouco a pouco, as suas ideias arrumam-se e a razão aperfeiçoa-se. É, em primeiro lugar, o selvagem que tudo sacrifica a uma bagatela e que depois se arrepende e chora; é Esaú trocando por lentilhas o seu direito de mais velho e querendo anular o negócio mais tarde; é o operário civilizado trabalhando a título precário e pedindo perpétuamente um aumento de salário porque nem ele nem o patrão compreendem que o salário é sempre insuficiente, fora da igualdade. Depois, é Naboth morrendo para defender a sua herança; Catou rasgando as entranhas para não ser escravo; Sócrates defendendo a liberdade do pensamento até ao golpe fatal; é o terceiro estado de 89 reivindicando a liberdade; dentro em pouco, será o povo exigindo a igualdade nos meios de produção e nos salários.
O homerm nasceu sociável, quer dizer, que procura a iguaidade e a justiça em todas as suas relações; mas ama a independência e o elogio:
a dificuldade de satisfazer ao mesmo tempo essas diversas necessidades é a primeira causa do despotismo da vontade e da apropriação que se lhe segue. Por outro lado, continuamente o homem necessita de trocar os seus produtos; incapaz de nivelar valores específicos diferentes contentasse em juigá-los por aproximação, segundo a sua paixão e o seu capricho; e entrega-se a um comércio desleal cujo resultado é sempre a opulência e a miséria. Assim, os maiores males da humanidade vêm-lhe da sociabilidade mal exercida, dessa mesma justiça de que tanto se orgulha e que aplica com uma ignorância tão deplorável. A prática do justo é uma ciência cuja descoberta e propagação porão, tarde ou cedo, termo à desordem social, esclarecendo-nos sobre os nossos direitos e deveres.
Esta educação progressiva e dolorosa do nosso instinto, esta transformação lenta e insensível das nossas percepções espontâneas em conhecimentos reflectidos, não se nota nos animais, cujo instinto se conserva fixo e nunca se ilumina.
Segundo Frédéric Cuvier, que tão claramente separou o instinto da inteligência nos animais, «o instinto é uma força primitiva e própria como a sensibilidade, a irritabilidade, a inteligência. O lobo e a raposa que reconhecem e que evitam as armadilhas para nelas não caírem, o cão e o cavalo que até aprendem o significado de várias palavras nossas e nos obedecem, fazem isso por inteligência. O cão que esconde os restos da sua refeição, a abelha que constrói a célula, o pássaro que faz o ninho, agem apenas por instinto. Há instinto até no homem; é por um instinto particular que o recém-nascido mama. Mas no homem quase tudo se faz por inteligência e a inteligência completa o instinto. Com os animais dá-se o inverso, o instinto foi-lhes dado como suplemento da inteligência». (Flourens, Resuno analítico das observações de F. Cuvier.)
Não se pode ter uma ideia clara do instinto senão admitindo que os animais têm no seu sensorium imagens ou sensações inatas e constantes que os determinam a agir como as sensações vulgares e acidentais vulgarmente determinam. É uma espécie de sonho ou visão que os persegue sempre; e em tudo o que respeita ao seu instinto podemos olhámos como sonâmbulos.» (F. Cuvier, lntrodução ao reino animal.)

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