sexta-feira, maio 07, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

Assim o mal, quer dizer, o erro e as suas consequências, é o primeiro filho da mistura de duas faculdades antagónicas, o instinto e a reflexão; o bem, ou a verdade, deve ser o segundoe inevitável fruto. Para continuar a figura o mal é o produto de um incesto entre dois poderes contrários; o bem será cedo ou tarde, o filho legítimo da sua santa e misteriosa união.
A propriedade, nascida da faculdade de raciocinar, falsifica-se pelas comparações. Mas assim como a reflexão e o raciocínio são posteriores à espontaneidade, a observação à sensação, a experiência ao instinto, assim a propriedade é posterior à comuinidade. A comunidade ou associação em modo simples é o fim necessário, a mola principal da sociabilidade, o movimento espontâneo pelo qual ela se manifesta e apresenta: é, para o homem, a primeira fase da civilização. Nesse estado de sociedade a que os jurisconsuitos chamaram comunidade negativa o homem aproxima-se do homem, partilha com ele os frutos da terra, o leite e a carne dos animais; a pouco e pouco, essa cominidade negativa que é, enquanto o homem não produz, tende a tornar-se positiva e engrenada pelo desenvolvimento do trabalho e da indústria. Mas é então que a autonomia do pensamento e a terrível faculdade de raciocinar sobre o melhor e o pior ensinam ao homem que se a igualdade é a condição necessária da sociedade, a comunidade é a primeira espécie de servidão.
Para dar a tudo isto uma forma hegeliana, direi:
A comunidade, primeiro modo, primeira determinação da sociabilidade, é o primeiro termo do desenvolvimento social, a tese; a propriedade, expressão contraditória da comunidade, forma o segundo termo, a antítese. Resta descobrir o terceiro termo, a síntese e teremos a solução pedida. Ora, essa síntese resulta necessariamente da correcção da tese pela antítese; portanto, é preciso, por um último exame dos seus caracteres, eliminar o que encerram de hostil à sociabilidade; os dois restos formarão, reunindo-se, o verdadeiro modo de associação humana.

§ 2.º - Caracteres da comunidade e da propriedade

I. - Não devo dissimular que, fora da propriedade ou da comunidade, ninguém concebeu sociedade possível: este erro para sempre deplorável ocasionou a propriedade. Os inconvenientes da comunidade são de uma evidência tal que os críticos nunca tiveram que empregar muita eloquência para desanimar os homens. A irreparabilidade das suas injustiças, a violência que faz às simpatias e às repugnâncias, o jugo de ferro que impõe à vontade, a tortura moral em que conserva a consciência, a atonia onde mergulha a sociedade, e enfim, para dizer tudo, a uniformidade beata e estúpida pela qual amarra a personalidade livre, activa, racional, insubmissa do homem, despertaram o bom senso geral e condenaram irrevogavelmente a comunidade.
As autoridades e os exemplos que se alegam em seu favor voltam-se contra ela: a república comunista de Platão supunha a escravatura; a de Licurgo fazia-se servir pelos ilotas que, encarregados de tudo produzir para os seus senhores, lhes permitiam entregar-se exclusivamente aos exercícios de ginástica e à guerra. Também J.-J. Rousseau, confundindo a comunidade e a igualdade, disse num dado local que não concebia possível a igualdade das condições sem a escravatura. As comunidades da Igreja primitiva não puderam ir até ao fim do primeiro século e logo degeneraram em fradarias; nas dos jesuítas do Paraguai a condição dos negros pareceu a todos os viajantes tão miserável como a dos escravos; e é verdade que os bons pais eram obrigados a cercar-se de fossos e muralhas para impedir os seus neóntos de fugir. Os babouvistas, levados por um horror exaltado da propriedade mais que por uma crença claramente formulada, caíram pelo exagero dos seus princípios; os são-simonianos, acumulando a comunidade e a desigualdade, passaram como uma mascarada. O perigo maior a que a sociedade hoje está exposta é o de naufragar mais uma vez contra este obstáculo.
Coisa singular! a comunidade sistemática, negação reflectida da propriedade, é concebida sob a influência directa do preconceito de propriedade; e é a propriedade que se encontra no fundo de todas as teorias dos comunistas.

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