domingo, maio 09, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

É verdade que os membros de uma comunidade nada têm de seu; mas a comunidade é proprietária e não só proprietária dos bens mas das pessoas e das vontades. É segundo este princípio de propriedade soberana que em toda a comunidade o trabalho, que não deve ser para o homem senão uma condição imposta pela natureza, se toma um imperativo humano, por isso mesmo odioso; que a obediência passiva, inconciliável com uma vontade que reflecte, é rigorosamente prescrita; que a fidelidade a regras sempre defeituosas não sofre nenhuma reclamação: que a vida, o talento, todas as faculdades do homem são propriedades do Estado, que tem direito a fazer delas o que lhe apetecer, no interesse geral; que as sociedades particulares devem ser severamente proibidas, apesar de todas as simpatias e antipatias de talentos e caracteres, porque tolerá-las seria introduzir pequenas comunidades na grande e, por consequência, propriedades; que o forte deve fazer o trabalho do fraco, se bem que esse dever seja de generosidade, não de obrigação, de conselho, não de preceito; o diligente o do preguiçoso, se bem que isso seja injusto; o hábil o do idiota, se bem que seja absurdo: enfim, que o homem despojado do seu eu, da sua espontaneidade, do seu génio e afeições deve apagar-se humildemente frente à majestade e inflexibilidade da comuna.
A comunidade é desigualdade mas no sentido inverso da propriedade. A propriedade é a exploração do fraco pelo forte; a comunidade é a exploração do forte pelo fraco. Na propriedade a desigualdade das condições resulta da força, qualquer que seja o nome com que se designe: força física e intelectual; força dos acontecimentos, acaso, fortuna; força de propriedade adquirida, etc. Na comunidade, a desigualdade vem da mediocridade do talento e do trabalho, glorificada com. a força. Esta equação injuriosa revolta a consciência e faz murmurar o mérito; porque, se para o forte pode ser um dever socorrer o fraco, quer fazê-lo por generosidade, não suportará nunca o confronto. Que sejam iguais pelas condições do trabalho e do salário mas que nunca a dúvida recíproca de infidelidade à tarefa comum desperte o ciúme.
A comunidade é opressão e servidão. O homem bem quer submeter-se à lei do dever, servir a pátria, obsequiar os amigos; mas quer trabalhar no que lhe apetecer quando lhe apetecer, enquanto lhe apetecer; quer dispor do seu tempo, só obedecer à necessidade de escolher as amizades, distracções, disciplina; prestar serviço por razão, não por ordem; sacrificar-se por egoísmo, não por uma obrigação servil. A comunidade é essencialmente contrária ao livre exercício das nossas faculdades, às mais nobres inclinações, aos sentimentos mais íntimos: tudo o que se imaginasse para a conciliar com as exigências da razão individual e da vontade só conseguiria mudar a coisa conservando o nome; ora se procuramos a verdade de boa fé, devemos evitar as contendas de palavras.
Assim, a comunidade viola a autonomia da consciência e igualdade: a primeira, comprimindo a espontaneidade do espírito e do coração, o livre arbítrio na acção e no pensamento; a segunda, recompensando com uma igualdade de bem-estar o trabalho e a preguiça, o talento e a idiotia, mesmo o vício e a virtude. De resto, se a propriedade é impossível pela emulação de adquirir, a comunidade dentro em pouco o virá a ser pela emulação de indolência.
II. - A propriedade, por sua vez, viola a igualdade pelo direito de exclusão e lucro e o livre arbítrio pelo despotismo. Tendo sido o primeiro efeito da sociedade suficientemente desenvolvido nos três capítulos precedentes, contentar-me-ei em estabelecer aqui a sua perfeita identidade com o roubo, numa última comparação.
Em latim ladrão diz-se fur e latro, o primeiro tirado do grego phôr, de pherô, latim fero, eu levo; o segundo de lathroô, sou salteador, cujo primitivo é léthô, latim lateo, escondo-me. Os Gregos têm ainda kleptês, de kleptô, desvio, de que as consoantes radicais são as mesmas que as de Kaluptó, tapo, escondo. Segundo estas etimologias a ideia de ladrão é a de um homem que esconde, leva, desvia uma coisa que não lhe pertence, seja de que maneira for.
Os Hebreus exprimiam a mesma ideia pela palavra gannab, ladrão, do verbo ganab que significa pôr de lado, desviar: lo thi-gnob (Decálogo, 8.º mandamento), não roubarás, quer dizer não reterás, nada porás de lado para ti. É o acto de um homem que entrando numa sociedade para onde promete levar tudo o que tem, conserva secretamente uma parte, como fez o célebre discípulo Ananias.

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