À nascença das nações bem podem os homens reflectir e raciocinar: sem, métodos nem princípios, nem sequer sabendo usar a razão, não sabem se vêem certo ou se se enganam; então é imensa a autoridade dos reis, não a contradizendo nenhum conhecimento adquirido. Mas, pouco a pouco, a experiência cria hábitos e estes costumes; depois os costumes formulam-se em máximas, põem-se em princípios, numa palavra, traduzem-se em leis às quais o rei, a lei viva, é forçado a prestar homenagem. Chegará o tempo em que os costumes e as leis estão tão multiplicados que a vontade do princípio é, por assim dizer, absorvida pela vontade geral; que ao aceitar a coroa é obrigado a jurar que governará conforme os costumes e usos e que ele apenas é o poder executivo de uma sociedade cujas leis são feitas sem ele.
Até aí tudo se passa duma maneira instintiva e, por assim dizer, independentemente de partidos: mas vejamos o termo fatal do movimento.
À força de se instruir e adquirir ideias o homem acaba por descobrir a ideia da ciência, quer dizer, a ideia de um sistema de conhecimento conforme à realidade das coisas e deduzida da observação. Procura então a ciência ou o sistema dos corpos brutos, o sistema dos corpos organizados, o sistema do mundo: como não procurar também o sistema de sociedade? Mas, chegado a esse termo, compreende que a verdade ou a ciência política é uma coisa completamente independente da vontade soberana, da opinião das maiorias e das crenças populares; que reis, ministros, magistrados e povos, como vontades, nada são para a ciência e não merecem nenhuma consideração. Compreende ao mesmo tempo que se o homem nasceu sociável a autoridade do pai sobre ele cessa no dia em que, formada a razão e completada a educação, se torna associado do pai; que o seu verdadeiro chefe e rei é a verdade demonstrada; que a política é uma ciência, não um ardil; e que a função de legislador se reduz, em última análise, à procura metódica da verdade.
Assim, numa dada sociedade, a autoridade do homem sobre o homem está na razão inversa do desenvolvimento intelectual ao qual essa sociedade chegou e a duração provável dessa autoridade pode ser calculada pelo desejo mais ou menos geral de um governo verdadeiro, quer dizer de um governo segundo a ciência.
E assim como o direito da força e o direito da esperteza se restringem perante a determinação cada vez maior da justiça e devem acabar por se extinguir, assim a soberania da vontade cede perante a soberania da razão e acabará por se anular num socialismo científico. A propriedade e a realeza estão em decadência desde o princípio do mundo; como o homem procura a justiça na igualdade, a sociedade procura a ordem na anarquia.
Anarquia, ausência de mestre, de soberano (1), tal é a forma de governo de que todos os dias nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e a sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a expressão do caos. Conta-se que tendo um burguês de Paris do século XVII ouvido dizer que em Veneza não havia rei, esse bom homem não podia crer e julgou morrer a rir com a primeira notícia de uma coisa tão ridícula. Tal é o nosso preconceito: tantos quantos somos queremos um chefe ou chefes; e observo neste momento uma brochura cujo autor, zeloso comunista, sonha com a ditadura, qual outro Marat. Entre nós os mais avançados são os que querem o maior número possível de soberanos, a realeza da guarda nacional é o objecto dos seus mais ardentes votos, se bem que algum dirá, sem dúvida, invejoso da milícia: toda a gente é rei; mas quando esse alguém tiver falado eu direi: Ninguém é rei; somos associados, quer queiramos quer não. Toda a questão de política interior deve ser esgotada segundo os dados da estatística departamental; toda a questão de política exterior é um assunto de estatística internacional. A ciência do governo pertence, de direito, a uma das secções da Academia das ciências, cujo secretário perpétuo se torna necessariamente primeiro ministro; e visto que qualquer cidadão pode dirigir uma dissertação à Academia, qualquer cidadão é legislador; mas, como não vale a opinião de ninguém enquanto não for demonstrada, ninguém pode pôr a sua vontade no lugar da razão, ninguém é rei.
Tudo o que é matéria de legislação e política é objecto de ciência, não de opinião:
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(1) O sentido geralmente atribuído à palavra anarquia é ausência de princípio, ausência de regra: donde vem que se tenha tomado a palavra por sinónimo de desordem.
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