o poder legislativo só pertence à razão, metodicamente reconhecida e demonstrada. Atribuir a um poder qualquer o direito de veto e sanção é o cúmulo da tirania. Justiça e legalidade são duas coisas tão independentes do nosso consentimento como a verdade matemática. Para obrigarem basta-lhes ser conhecidas; para se deixarem ver pedem apenas a meditação e o estudo. O que é então o povo se não é soberano, se não é dele que vem o poder legislativo? O povo é o guarda da lei, o povo é o poder executivo. Todo o cidadão pode afirmar: Isso é verdadeiro; isso é justo; mas a sua convicção só o obriga a ele: para que a verdade que proclama se torne lei é preciso que seja reconhecida. Ora, que significa reconhecer uma lei? É verificar uma operação matemática ou de metafísica; é repetir uma experiência, observar um fenómeno, verificar um facto. Só a nação tem o direito de dizer: Mandamos e ordenamos.
Confesso que tudo isto é o reverso das ideias recebidas e parece que tomo por tarefa virar a actual política; mas peço ao leitor que considere que tendo começado por um paradoxo devia, se raciocinasse a direito, encontrar paradoxos a cada passo e acabar por paradoxos. De resto, não vejo que perigo correria a liberdade dos cidadãos se fosse entregue aos cidadãos a luva da lei em vez da pena de legislador. Pertencendo o poder executivo essencialmente à vontade, não pode ser confiado a demasiados mandatários: aí está a verdadeira soberania do povo (1).
O proprietário, o ladrão, o herói, o soberano, porque todos esses substantivos são sinónimos, impõe a sua vontade por lei e não sofre contradição nem fiscalização, quer dizer que pretende ser poder legislativo e poder executivo ao mesmo tempo.
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(1) Se tais ideias penetrassem alguma vez os espíritos seria por intermédio do governo representativo e da tirania dos faladores. Outrora a ciência, o pensamento, a palavra eram confundidos sob uma mesma expressão; para designar um homem forte de pensamento e saber, dizia-se um homem pronto a falar e poderoso no discurso. Desde há muito que a palavra foi separada da razão e da ciência por abstracção; pouco a pouco, essa abstracção realizou-se na sociedade, como dizem os lógicos; tão bem, que hoje temos sábios de várias espécies, que não falam nada, e faladores que nem sequer são sábios na ciência da palavra. Assim um filósofo já não é um sábio; é um falador. Um legislador, um poeta, foram outrora homens profundos e divinos: hoje são faladores. Um falador é um timbre sonoro a quem o menor choque faz produzir um som interminável; no falador o fluxo do discurso está sempre na razão directa da pobreza do pensamento: os faladores governam o mundo; espantam-nos, assombram-nos, roubam-nos, sugam-nos o sangue e riem-se de nós; quanto aos sábios calam-se: se querem falar cortam-lhes a palavra. Que escrevam, então.
Também a substituição da lei científica e verdadeira da vontade real não se consegue sem uma luta terrível e essa substituição incessante é mesmo, depois da propriedade, o mais poderoso elemento da história, a causa mais fecunda dos movimentos políticos. Os exemplos são demasiado numerosos e visíveis para que me detenha a mencioná-los.
Ora a propriedade engendra necessariamente o despotismo, o governo do belo prazer, o reino de uma vontade libidinosa: isso faz de tal maneira parte da essência de própriedade que basta, para se convencerem, lembrar o que ela é e o que se passa à nossa volta. A propriedade é o direito de usar e abusar. Portanto, se o governo é economia, se tem por único objecto a produção e o consumo, a distribuição dos trabalhos e produtos, como se pode conciliar o governo com a propriedade? Se os bens são propriedades como é que os proprietários não seriam reis e reis despóticos, reis na proporção das suas faculdades de posse? E se cada proprietário é senhor absoluto na esfera da sua propriedade, como é que um governo de proprietários não seria um caos e uma confusão?
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