domingo, maio 09, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

A etimiologia do nosso verbo voler é ainda mais significativa. Voler ou faire Ia vole, do latim vola, palma da mão, é fazer todas as vasas no jogo de cartas: de maneira que o ladrão é como um baneficiário que fica com tudo, que faz a partilha do leão. É provável que o verbo voler deva a sua origem ao calão dos ladrões, donde terá passado para a linguagem familiar e, em seguida, para o estilo das leis.
O roubo exerce-se por uma infinidade de meios, que os legisladores muito habilmente distinguiram e classificaram segundo o grau de atrocidade ou mérito, a fim de que nuns o roubo fosse louvado e noutros punido.
Rouba-se: 1.º - assassinando na via pública; 2.º - só ou em grupo; 3.º - por arrombamento; 4.º - por desvio; 5.º - Por falência fraudulenta; 6.º - Por erro em escritura pública ou privada; 7.º - pelo fabrico de moeda falsa.
Esta espécie compreende todos os ladrões que exercem o ofício sem outro auxílio que a força e a fraude declarada: bandidos, salteadores, piratas de terra e mar, os antigos heróis orgulhavam-se de usar esses nomes honrosos e sentiam a sua profissão tão nobre quanto lucrativa. Nenrod, Teseu, Jason e os seus Argonautas: Jefté, David, Caco, Rómulo, Clovis e todos os seus descendentes merovíngios; Robert Guiscard, Tancredo de Hauteville, Bohémond e a maior parte dos heróis normandos foram ladrões e salteadores. O carácter heróico do ladrão está expresso neste verso de Horácio falando de Aquiles:

Jura neget sibi nata, nihil non arroget armis (1),

e por estas palavras do testamento de Jacob (Genèse, ch. 48), que os juízes aplicam a David e os cristãos a Cristo: Manus ejus contra omnes; a Sua mão rouba. Hoje em dia o ladrão é pertinazmente perseguido; o seu ofício, nos termos do Código, implica pena aflitiva e infamante, desde a reclusão até à execução. Triste volta das opiniões!
Rouba-se: 8.º - por gatunice; 9.º - por escroqueria; 10.º - por abuso de confiança; 11.º - por jogos e lotarias.
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(1) O meu direito é a minha lança e o meu escudo. - O General de Brossard dizia como Aquiles. «Tenho vinho, ouro e mulheres com a minha lança e o meu escudo.»

Esta segunda espécie era encorajada pelas leis de Licurgo, a fim de aguçar a fineza de espírito e invenção nos jovens; é a dos Ulisses, Sólon, Sinon, dos juízes antigos e modernos de Jacob a Deutz; dos Boémios, Árabes e todos os selvagens. Sob Luís XIII e Luís XIV não era desonra ser batoteiro ao jogo, isso fazia, de qualquer maneira, parte das regras e muitas pessoas honestas não tinham qualquer escrúpulo em corrigir os caprichos da fortuna por uma hábil escamoteação. Mesmo hoje e em todos os países é uma espécie de mérito muito considerado entre os camponeses do alto e do baixo comércio, o saber fazer negócio, o que quer dizer enganar o parceiro: isso é de tal maneira aceite que o que se deixa enganar não fica a querer mal ao outro. Sabe-se com que pena o nosso governo se resolveu a abolir as lotarias; sentia que era dado um golpe de punhal à propriedade. O gatuno, o escroque, o charlatão usa sobretudo a destreza da mão, a subtilidade do espírito, o prestígio da eloquência e de um grande poder de invenção; algumas vezes lança um isco à cupidez: também o Código penal, para o qual a inteligência é muito preferível ao vigor muscular, julgou dever fazer das quatro variedades aqui mencionadas uma segunda categoria, só passível de penas correccionais, não infamantes. Que se acuse agora a lei de ser materialista e ateia.
Rouba-se: 12.º - por usura.
Esta espécie, tornada tão odiosa desde a publicação do Evangelho e tão severamente punida, marca a transição entre os roubos proibidos e os roubos autorizados. Também dá lugar, pela sua natureza equívoca, a uma série de contradições nas leis e na moral, contradições muito hábilmente exploradas pelas pessoas da finança e do comércio. Assim, o usurário que empresta sobre hipoteca a 10, 12 e 15 por tento, incorre numa multa enorme quando é apanhado; o banqueiro que recebe o mesmo juro na realidade não a título de empréstimo mas a título de troca ou desconto quer dizer, venda, é protegido por privilégio real. Mas a distinção entre o banqueiro e o usurário é puramente nominal; como o usurário que empresta sobre um móvel ou imóvel, o banqueiro empresta sobre papel-valor; como o usurário recebe o juro adiantado; como o usurário conserva recurso contra o que pediu se a caução vier a perecer, quer dizer, se a letra não for paga, circunstância que precisamente faz dele uma pessoa que empresta dinheiro, não um vendedor de dinheiro.

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