Se bem que em graus deferentes, sendo a inteligência e o instinto comuns aos animais e ao homem, o que distingue este? Segundo F. Cuvier é a reflexão ou a faculdade de considerar intelectualmente as nossas próprias modificações por um auscultar de nós próprios.
Falta clareza a isto e precisa de explicação.
Se se atribui a inteligência aos animais é precisa atribuir-lhes também a reflexão, num grau qualquer; porque a primeira não existe sem a segunda e foi o próprio F. Cuvier que o provou com uma quantidade de exemplos. Mas reparemos que o sábio observador define a espécie de reflexão que nos distingue dos animais, faculdade de considerar as nossas próprias modificações. É o que vou esforçar-me por fazer entender, suprindo o melhor que posso o laconismo do filósofo naturalista.
A inteligência adquirida pelos animais nunca lhes faz modificar as operações que realizam de instinto; nem sequer lhes é dada para providenciarem aos acidentes imprevistos que poderiam perturbar essas operações. Pelo contrário, no homem, a acção instintiva transforma-se continuamente em acção reflectida. Assim, o homem é sociável por instinto e em cada dia se transforma por raciocino e escolha; no princípio criou a sua palavra de instinto (1), foi poeta por inspiração;
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(1) O problema da origem da linguagem está resolvido pela distinção que Frédéric Cuvier fez entre o instinto e a inteligência. A linguagem não é uma invenção premeditada, arbitrária ou convencional; não nos vem de Deus nem por comunicação nern por revelação: a linguagem é uma criação instintiva e não deliberada do homem, como a colmeia é uma criação instintiva e irreflectida da abelha. Neste sentido pode dizer-se que a linguagem não é obra do homem, visto que não é obra da sua razão; também o mecanismo das linguas parece tanto mais admirável e engenhoso quanto à reflexão aí cabe uma menor parte. Este facto é um dos mais curiosos e menos contestáveis que a filosofia tem observado. Ver, entre outras, uma dissertação latina de F. G. Bergmann, Estrasburgo, 1839, na qual o sábio autor explica como o germe fonético se engendra na sensação; como a linguagem se desenvolve em três períodos sucessivos; porque é que o homem, dotado ao nascer da faculdade instintiva de criar a sua língua, perde essa faculdade à medida que a razão se desenvolve; enfim, como o estudo das linguas é uma verdadeira história natural, uma ciência . A França possui hoje vários filólofos de primeiro plano, de um talento raroeo de uma filosofia profunda: sábios modestos criando a ciência quase contra vontade do público e cuja devoção a estudos vergonhosamente desdenhados parecem fugir aos aplausos com tanto cuidado como outros os procuram.
hoje faz da gramática uma ciência e da poesia uma arte; acredita em Deus e numa vida futura por uma noção espontânea a que ouso chamar instinto; e esta noção exprimiu-a sob formas monstruosas, bizarras, elegantes, consoladoras ou terríveis; todos esses cultos diversos, de que a impiedade frívola do século XVIII troçou, são as línguas que o sentimento religioso falou, o homem explicar-se-á um dia o que é esse Deus que o seu pensamento procura, o que pode esperar desse outro mundo ao qual a sua alma aspira.
O homem não faz caso algum de tudo o que realiza por instinto e despreza-o; ou, se o admira, não é como seu, é como obra da natureza: daí o esquecimento que cobre os nomes dos primeiros inventores: daí a nossa indiferença pela religião e o ridículo em que caíram as suas práticas. O homem só estima os produtos da reflexão e do raciocínio. As obras mais admiráveis do instinto aos seus olhos não passam de felizes achados; dá o nome de descobertas, ia dizendo criações, às obras da inteligência. É o instinto que produz as paixões e o entusiasmo; é a inteligência que faz o crime e a virtude.
Para desenvolver a inteligência o homem aproveita não só as suas próprias observações mas também as dos outros; anota experiências, conserva anais; de maneira que há progresso de inteligência nas pessoas o na espécie. Entre os animais não se faz nenhuma transmissão de conhecimentos; as lembranças de cada indivíduo desaparecem com ele.
Seria, pois, insuficiente dizer que o que nos distingue dos animais é a reflexão, se por isso não se entendesse a tendência constante do nouo instinto a tornar-se inteligência. Enquanto o homem está submetido ao instinto não tem qualquer consciência do que faz; nunca se enganaria e não haveria para ele erro, mal ou desordem se, como os animais, só tivesse o instinto por motor. Mas o Criador dotou-nos de reflexão a fim de que o nosso instinto se tornasse inteligência; e como essa reflexão e o conhecimento que daí resulta depara com uma escala acontece que ao princípio o nosso instinto é mais contrariado que gulado pela reflexão; por consequência que a nossa faculdade de pensar que nos faz agir contrariamente à nossa natureza e ao nosso fim; que, enganando-nos, fazemos o mal e sofremos com isso até que o instinto que nos leva ao bem e a reflexão que nos faz inclinar para o mal sejam substituídos pela ciência do bem e do mal, que nos faça procurar um e evitar o outro com segurança.
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