terça-feira, junho 22, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

CAPÍTULO II
Concepção a Priori da Ordem Política: Regime de Autoridade,
Regime de Liberdade

Conhecemos os dois princípios fundamentais e antitéticos de todos os governos: autoridade, liberdade.
Em virtude da tendência do espírito humano a reduzir todas as suas ideias a um princípio único, começando por eliminar as que lhe parecem inconciliáveis com este princípio, deduzem¬ se dois regimes diferentes, a priori, destas duas noções primordiais, segundo a preferência ou a predi¬lecção acordadas a uma ou à outra: o regime de autoridade e o regime de liberdade.
Além disso, sendo a sociedade composta de indivíduos, e podendo a relação do indivíduo ao grupo conceber¬ se, do ponto de vista político, de quatro maneiras diferentes, daí resultam quatro formas governamentais, duas para cada regime:

I. Regime de Autoridade.

A) Governo de todos por um só; Monarquia ou Patriarcado;
a) Governo de todos por todos; – Panarquia ou Comunismo.
O carácter essencial deste regime, nas suas duas formas, é a indivi¬são do poder.

II. Regime de Liberdade.

B) Governo de todos por cada um; – Democracia;
b) Governo de cada um por cada um; – Anarquia ou Self- Government.b)
O carácter essencial deste regime, nas suas duas formas, é a divisão do poder.

Nada mais, nada menos. Esta classificação dada a priori pela natureza das coisas e pela dedução do espírito é matemática. Enquanto que a polí¬tica é suposta resultar de uma construção silogística, como a consideraram naturalmente todos os antigos legisladores, não pode ficar aquém dela nem ir além. É notável este simplismo: mostra¬ nos desde a origem, e sob todos os regimes, o chefe do Estado esforçando¬ se por deduzir as suas consti¬tuições dum único elemento. A lógica e a boa fé são primordiais em polí¬tica: ora, aí reside precisamente a armadilha.

Observações:

I. Sabemos como se estabelece o governo monárquico, expressão pri¬mitiva do princípio da autoridade. O Sr. de Bonald explica¬ no¬ lo: é pela auto¬ridade paternal. A família é o embrião da monarquia. Os primeiros Esta¬dos foram geralmente as famílias ou tribos governadas pelo seu chefe natural, marido, pai, patriarca, e finalmente rei.
Sob este regime, o desenvolvimento do Estado efectuava¬ se de duas formas: 1ª pela geração ou multiplicação natural da família, tribo ou raça; 2ª por adopção, quer dizer, pela incorporação voluntária ou forçada das famílias e tribos circum¬ vizinhas, mas de maneira que as tribos reunidas se tornassem com a tribo mãe uma só família, uma mesma domesticidade. Este desenvolvimento do estado monárquico pode atingir enormes propor¬ções, indo até às centenas de milhões de homens, dispersos por centenas de milhar de léguas quadradas.
A panarquia, pantocracia ou comunidade, forma¬ se naturalmente pela morte do monarca ou chefe de família e a declaração das pessoas, irmãos, filhos ou associados de continuarem indivisos, sem haver eleição de um novo chefe. Esta forma política é rara, mesmo se há exemplos, a autori¬dade é aí mais pesada e o individualismo mais oprimido que em nenhuma outra. Não foi adoptada senão pelas associações religiosas, que, em todos os países e em todos os cultos, tenderam à destruição da liberdade. Mas a ideia desta forma é¬ nos fornecida a priori, do mesmo modo que a ideia monárquica; ela encontrará a sua aplicação nos governos de facto, e devía¬mos mencionᬠla pelo menos para memória.
Assim a monarquia, fundada naturalmente, justificada em consequência pela sua ideia, tem a sua legitimidade, e a sua moralidade: assim é também para o comunismo. Mas veremos dentro em pouco que estas duas vari¬antes do mesmo regime não podem, não obstante os seus dados concretos e a sua dedução racional, manter¬ se no rigor do seu princípio e na pureza da sua essência, que estão condenadas consequentemente a conservarem¬ se sempre no estado hipotético. De facto, não obstante a sua origem patriarcal, o seu temperamento afável, a sua afectação de absolutismo e de direito divino, a monarquia e a comunidade, conservando no seu desen-volvimento a sinceridade do seu tipo, não se encontram em parte alguma.

II. Como se estabelece por seu lado o governo democrático, expressão espontânea do princípio de liberdade? Jean¬ Jacques Rousseau e a Revo¬lução ensinaram¬ no¬ lo: pela convenção. Aqui a fisiologia não existe: o Estado aparece como o produto, não da natureza orgânica, da carne, mas da natureza inteligível, que é o espírito.
Sob este outro regime, o desenvolvimento do Estado tem lugar por acessão ou adesão livre. Do mesmo modo que os cidadãos se presume terem todos assinado o contrato, o estrangeiro que entra na cidade é consi¬derado como tendo por sua vez aderido a ele: é sob esta condição que ele obtém os direitos e as prerrogativas de cidadão. Se o Estado tem que suportar uma guerra e se torna conquistador, é levado pelo seu princí¬pio a conceder às populações conquistadas os mesmos direitos dos quais gozam os seus próprios nacionais: é o que se chama isonomia. Tal era entre os romanos a concessão do direito de cidade. As próprias crianças pessupõe¬ se, quando atingem a maioridade, terem jurado o pacto; não é por serem filhos de cidadãos que se tornam por sua vez cidadãos também, como na monarquia os filhos dos súbditos são súbditos por nascimento, ou como nas comunidades de Licurgo e Platão eram propriedade do Estado: para ser membro de uma democracia, é preciso, por direito, independente-mente da qualidade de ingénuo, ter feito escolha do sistema liberal.
A mesma coisa acontece na acessão de uma família, de uma cidade, de uma província: é sempre a liberdade que é o seu princípio e que lhe for¬nece os motivos.
Deste modo, ao desenvolvimento do estado autoritário, patriarcal, mo¬nár¬quico ou comunista, opõe¬ se o desenvolvimento do estado liberal, contratual e democrático. E como não há limite natural à extensão da monarquia, o que em todos os tempos e em todos os povos tem sugerido a ideia de uma monarquia universal ou messiânica, também não há tão pouco limite natural à extensão do estado democrático, o que sugere igual¬mente a ideia de uma democracia ou república universal.
Como variante do regime liberal, assinalei a ANARQUIA ou governo de cada um por si próprio, em inglês self¬ government. Como a expressão de governo anárquico implica uma espécie de contradição, a coisa parece impossível e a ideia absurda. Não há no entanto que retomar aqui senão a linguagem: a noção de anarquia, em política, é tão racional e positiva como qualquer outra. Consiste em que, reduzidas as funções políticas às funções industriais, a ordem social resultaria da simples existência de transacções e trocas. Todos poderiam então dizer¬ se autocratas de si próprios, o que é o extremo oposto do absolutismo monárquico.
Do mesmo modo, ou mais, que a monarquia e o comunismo, fundados na natureza e na razão, têm a sua legitimidade e a sua moralidade, sem que nunca possam realizar¬ se no rigor e na pureza da sua noção; assim a democracia e a anarquia, fundadas na liberdade e no direito, prosseguindo um ideal relacionado com o seu princípio, têm a sua legitimidade e a sua moralidade. Mas veremos também que, a despeito da sua origem jurídica e racionalista, elas não podem tão pouco, quando crescem em população e território, manter¬ se no rigor e na pureza da sua noção e que estão conde¬nadas a ficar no estado de desiderata perpétuos. Apesar do atractivo po¬de-roso da liberdade, nem a democracia nem a anarquia, na sua plenitude e na integralidade da sua ideia, se constituíram em algum lugar.c)

b)Auto-Governo. Em Inglês, no original (N.T.)

c)Proudhon fala aqui somente dos sistemas de governo que podem ser concebidos a priori. Concluiu que nenhum dos quatro pode ser realizado em todo o seu rigor e pu¬reza de ideia. É natural que assim tenha concluído. Sendo imperecível e indestrutível tanto a autoridade como a liberdade, e estando cada um dos sistemas assente sobre um só dos dois princípios, não era possível que se tivessem realizado e no caso de chegar a realizarem-se, não subsistiriam. A monarquia e a anarquia, em absoluto, não existem em nenhuma parte. (N.T.)

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