terça-feira, junho 29, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

O povo, devido à sua própria inferioridade e à sua miséria, formará sempre o exército da liberdade e do progresso; o trabalho é republicano por natureza: o contrário implicaria contradição.
Mas, devido à sua ignorância dos seus instintos primitivos, da violência das suas necessidades, da impaciência dos seus desejos, o povo inclina¬ se para as formas sumárias de autoridade. O que ele procura, não são garan¬tias legais, das quais não faz qualquer ideia e não concebe o poderio; não é em absoluto uma combinação de mecanismos, uma ponderação de forças, das quais não sabe que fazer: é um chefe em cuja palavra possa acreditar, cujas intenções sejam suas conhecidas e que se devote aos seus interesses. A esse chefe, ele dá uma autoridade sem limites, um poder irresistível. O povo, olhando como justo tudo o que julga ser¬ lhe útil, tendo en conta que ele é o povo, ri¬ se das formalidades, não faz caso algum das condições impostas aos depositários do poder. Predisposto à desconfiança e à calú¬nia, mas incapaz de uma discussão metódica, não acredita em definitivo senão na vontade humana, não tem esperança senão no homem, não tem confiança senão nos seus semelhantes, in principibus, in filiis hominumn); não espera nada dos princípios, que só eles os podem salvar; não tem a religião das ideias.
Foi assim que a plebe romana, depois de setecentos anos de um regime progressivamente liberal e uma sequência de vitórias conseguidas sobre o patriciado, acreditou resolver prontamente todas as dificuldades destruindo o partido da autoridade, e que exagerando o poderio tribunício deu a César a ditadura perpétua, fez calar o Senado, fechar os comícios, e, por um alqueire de trigo, uma annonao), fundou a autocracia imperial. O que há de curioso, é que esta democracia estava sinceramente convencida do seu liberalismo, e que ela gabava¬ se de representar o direito, a igualdade e o progresso. Os soldados de César, idólatras do seu imperador, estavam cheios de ódio e de desprezo pelos reis: se os assassinos do tirano não foram imolados imediatamente, foi porque César tinha sido visto na vés¬pera experimentando a faixa real sobre a sua fronte calva. Assim os com¬panheiros de Napoleão I, saídos do clube dos Jacobinos, inimigos dos no¬bres, dos clérigos e dos reis, acharam muito simples cobrirem¬ se de títulos de barões, de duques, de príncipes e fazerem a corte ao imperador; não lhe perdoariam ter tomado por esposa uma princesa de Habsbourg.
Entregue a si própria ou conduzida pelos seus tribunos, a multidão nunca fundou coisa alguma. Tem a face virada para trás: nenhuma tradi¬ção se forma nela; não há espírito de encadeamento, nenhuma ideia que adquira força de lei. Da política só compreende a intriga, do governo a abundância e a força, da justiça só a perseguição, da liberdade só a facul¬dade de erigir os ídolos que derruba no dia seguinte. A chegada da demo¬cracia abre uma era de retrocesso que conduziria a nação e o Estado à morte, se não se curvassem à fatalidade que os ameaça de uma revolução em sentido inverso, que actualmente se trata de apreciar.
Tal como a plebe, vivendo dia a dia, sem propriedades, sem empresas, fora dos empregos públicos, está ao abrigo dos riscos da tirania e com ela pouco se inquieta, assim a burguesia, que possui, trafica e fabrica, ávida de terra e dos tratamentos, está interessada em prevenir as catástrofes e assegurar a devoção do poder. A necessidade de ordem trᬠla de volta às ideias liberais: daí as constituições que ela impõe aos seus reis. Ao mesmo tempo que rodeia o governo da sua escolha de formas legais e o sujeita ao voto de um parlamento, ela restringe o direito político a uma categoria de censores e suprime o sufrágio universal; mas evita tocar na centralização administrativa, contraforte ao feudalismo industrial. Se a separação de poderes lhe é útil para contrabalançar a influência da coroa e anular a política pessoal do príncipe; se por outro lado o privilégio eleitoral a serve igualmente bem contra as aspirações populares, a centralização não lhe é menos preciosa, desde logo pelos empregos de que necessita e que colocam a burguesia a partilhar do poder e dos impostos, depois pelas facilidades que ela dá à exploração tranquila das massas. Sob um regime de centrali¬zação administrativa e de sufrágio restrito, onde, enquanto a burguesia pela maioria continua senhora do governo, toda a vida local está contro-lada, toda a agitação facilmente comprimida, sob um tal regime, dizia eu, a classe trabalhadora, arrumada nas suas oficinas, está naturalmente vota¬da ao salariato. A liberdade existe, mas na esfera da sociedade bur¬guesa, cosmopolita como os seus capitais: quanto à multidão, esta entregou a sua demis¬são, não só política mas económica.
Acrescentarei que a supressão ou a continuação de uma dinastia nada mudaria no sistema? Uma república unitária ou uma monarquia constitu¬cional são uma e a mesma coisa: não há senão uma mudança de palavras e um funcionário a menos.
Mas se o absolutismo democrático é instável, o constitucionalismo burguês não o é menos. O primeiro era retrógrado, desenfreado, sem princí¬pios, desdenhoso do direito, hostil à liberdade, destruidor de toda a segu¬rança e confiança. O sistema constitucional, com as suas formas legais, o seu espírito jurídico, o seu temperamento contido, as suas soleni¬dades parlamentares, mostra¬ se nitidamente, no fim de contas, como um vasto sistema de exploração e de intriga, onde a política pende para a agiotagem, onde o imposto não é senão a lista civil de uma casta, e o poder monopoli¬zado o auxiliar de um monopólio. O povo tem o sentimento vago desta imensa expoliação: as garantias constitucionais pouco lhe dizem, e vimo¬ lo, por exemplo em 1815, preferir o seu imperador, não obstante as suas infidelidades, aos seus reis legítimos, apesar do seu liberalismo.
O insucesso alternativo, repetido, da democracia imperial e da consti¬tucionalidade burguesa, tem como resultado o criar um terceiro partido que, asteando a bandeira do cepticismo, não defendendo nenhum princípio, essencial e sistematicamente imoral, tende a reinar, como se disse, pela báscula, quer dizer pela ruína de toda a autoridade e de toda a liberdade, numa palavra pela corrupção. É o que se chamou sistema doutrinário. Acolhido a princípio pela raiva e pela execração dos antigos partidos, esse sistema não demorou a singrar rapidamente, apoiado pelo desencoraja¬mento crescente, e justificado em certa medida pelo espectáculo da con¬tradição universal. Em pouco tempo, tornou¬ se a fé secreta do Poder, a quem o pudor e a decência proibirão sempre de fazer profissão pública de cepticismo; mas ele é a crença confessa da burguesia e do povo que, não sendo já impedidos por nenhuma consideração, deixam expandir a sua indiferença e disso se orgulham. Eis a autoridade e a liberdade perdidas nos espíritos, a justiça e a razão consideradas como palavras vãs, a socie¬dade dissolvida, a nação abatida. O que subsiste não passa de matéria e força brutal; uma revolução torna¬ se, sob risco de morte moral, eminente. Que sairá dela? A história está aí para responder; os exemplos contam¬ se aos milhares. Ao sistema condenado sucederá, graças ao movimento das gerações esquecidas mas incessantemente rejuvenescidas, uma nova transacção, que seguirá o mesmo caminho, e que, por sua vez usada e desonrada pela contradição da sua ideia, terá o mesmo fim. E isto conti¬nuará até que a razão colectiva tenha descoberto o meio de dominar os dois princípios e de equilibrar a sociedade pela própria regularização dos seus antagonismos.

n)Em latim, no original. Nos príncipes, nos filhos dos homens. (N.T.)
o)Em latim, no original. Provisão de mantimentos; colheita dos frutos de um ano. (N.T.)

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