O Sr. Fr. Morin a quem o carácter dogmático, as preferências unitárias e os costumes puritanos dão alguma parecença com Robespierre e Mazzini, far¬me¬ia prazer, para começar, em me dizer se, no que diz respeito à relação entre a Autoridade e a Liberdade, é do parecer dos dois célebres tribunos? A teoria que forneci do sistema federativo na primeira parte deste escrito; as consequências que em seguida fiz sobressair, pela prática, da teoria unitária, far¬lhe- ão compreender o sentido e o alcance da minha questão. (Ver anteriormente IIª parte, cap. III.)
Da maneira de conceber a relação entre a Autoridade e a Liberdade de¬duz¬ se imediatamente a máxima política que dirige o governo, dizendo de forma diferente a Razão de Estado. Se a Liberdade é preponderante, essa máxima será o DIREITO: não pode ser outra coisa. Se é a autoridade, será uma ideia, Deus, por exemplo, a religião, a Igreja ou o sacerdócio, o intresse da nobreza, o respeito da autoridade, a dinastia, ou todas estas coisas em conjunto. Para Mazzini, como para Robespierre, é antes de tudo, a unidade.
A consequência é terrível. Se a máxima política ou razão de Estado é a justiça, em consequência do princípio incontestável que o fim determina e justifica os meios, tudo deverá ser, no conselho da nação, subordinado ao direito, direito público, direito civil, direito económico, direito das pessoas. A própria salvação da nação, se por hipótese se pudesse conceber que a um dado momento a salvação da nação estivesse além do direito, deveria ser sacrificado ao direito, o que significa que a nação deveria ser mártir da justiça. Se ao contrário a máxima política, derivando do princí¬pio da autoridade, é uma ideia, um dogma, esse dogma tendo a primazia sobre a justiça, todo o direito e toda a moral poderiam ser sacrificados, na ocasião, à razão de Estado, tal como faz entender a famosa divisa dos jesuítas, Ad majorem Dei gloriam u), ou aqueloutra que dela não é senão um corolário, Salus populi suprema lex esto v), etc. De forma que haverá duas morais, uma moral de Estado, corolário da razão de Estado, superior ao direito e à justiça, e uma moral vulgar, tendo força de lei em todos os casos em que não haja lugar a fazer apelo à razão de Estado .
A soberania da razão de Estado foi admitida até hoje em todos os go¬vernos sem excepção, mesmo nos governos republicanos e democráticos. Foi até ao presente a condição sine qua non x) e o selo de reprovação da política. Por essa soberania atroz, a Liberdade e a Justiça, na medida em que elas podem contrariar a acção do Príncipe ou o governo, são proscritas sistematicamente. O governo ideal, sob este aspecto, seria portanto aquele em que a razão de Estado não seria mais senão o mesmo que qualquer outra razão; melhor dizendo, seria aquele onde a Justiça e a Liberdade seriam elas mesmas tomadas como razão de Estado. Ora, esse sistema existe, é o sistema federativo.
O Sr. Fr. Morin reconhece a Justiça como única razão de Estado, ou pensa a exemplo de Mazzini, de Robespierre e de Maquiavel, a exemplo dos Reis, dos Imperadores, dos Pontífices e de todos os tribunos do povo, que possa existir uma outra? Acredita que há circunstâncias em que a república e a sociedade ficariam em perigo se a Justiça não fosse sacrifi¬cada a um interesse pretensamente superior, a um ideal político, religião, Igreja, sacerdócio, nobreza, dinastia, democracia, nacionalidade, unidade, comunidade, etc.? É, por último, resolutamente, pela prerrogativa do Direito contra toda outra prerrogativa, ou admite, em certos momentos senão sempre, uma lei de ordem mais elevada e que prima sobre o Direito?
A questão é das mais sérias. Um bom número de democratas declinam essa soberania da Justiça, que não tende a nada menos, com efeito, senão a eliminar todos os velhos sistemas, a Democracia unitária como os outros. Excluir da política toda a espécie de razão de Estado, efectivamente, e dar o reino ao Direito somente, é afirmar a confederação; é como se o Legis¬lador dissesse às massas, invertendo as palavras do Decálogo: Não tereis mais outra lei senão o vosso próprio estatuto,outro soberano senão o vosso contrato; é abolir a idolatria unitária.
Uma consequência de tudo isto, dependendo de se declararem exclusivamente pela Justiça ou que se reconhecerá uma razão de Estado superior à Justiça, é a seguinte, que, na prática, tem a sua importância.
Seguindo Mazzini, o governo não sendo fundado sobre um contrato positivo, mas sobre um contrato tático, unilateral, análogo àquele que liga a criança à família; não advindo originalmente da liberdade, como princí¬pio preponderante, mas de uma ideia anterior e superior a todas as convenções, tal como a autoridade divina, Dio e populo, ou qualquer outra, segue¬se que ao olhar de Mazzini, república, democracia, monarquia e império são fórmulas que podem ter a sua importância no uso comum, mas que não tocam o essencial das coisas e podem muito bem trocar¬se; que o essencial é que a ideia anterior e superior seja respeitada e a máxima do Estado obedecida; que consequentemente um homem como ele, Mazzini, pode em consciência, ocasionalmente, ao mesmo tempo que se diz republicano e democrata, gritar e fazer gritar Viva o rei! basta que sirva a ideia superior, a unidade. Não há senão uma coisa que o republicano democrata Mazzini e os seus aderentes não se podem permitir, seria dizerem¬se federalistas, pois que ao afirmar a federação renunciariam ao seu idealismo político, à sua razão de Estado.
Não é assim para aquele que se uniu convictamente e de coração à ideia federal. O sistema político e a ordem social assentando por inteiro, para ele, não mais sobre um mito, um ideal poético ou qualquer outra concepção, mas sobre o direito para exprimir o contrato, ele não pode, sob nenhum pretexto, reconhecer como expressão desse princípio, nem realeza nem pontificado; ao fazê¬lo, mentiria à sua consciência. O federalista pode desejar saúde, prosperidade e vida longa ao príncipe, do mesmo modo que a todo o indivíduo cujas opiniões não partilha: a sua benevolência estende¬se a todos os homens. Igualmente não sente raiva pela realeza, não faz demonstração de regicídio: sabe que a liberdade é progressiva, que a realeza é de instituição transitória, do mesmo modo que a adoração e o sacrifício, e respeita todas as instituições. Mas, como o cris¬tão que, re¬zando por César, recusava sacrificar ao Génio e à Fortuna de César, por¬que isso teria sido um acto de idolatria, do mesmo modo, o federalista, mesmo quando fazia votos pela pessoa do monarca, não gritaria nunca, com Mazzini e Garibaldi, Viva o rei!
Desta forma o federalismo e o jacobinismo separam¬ se um do outro: o primeiro, indiferente às questões pessoais, mas intratável sobre os princípios; o segundo, fraco pelas ideias, poderoso somente pelo ódio, mas sabendo se necessário impor silêncio aos seus rancores e tornar¬se possível.
u) Em latim, no original. Para maior glória de Deus. (N.T.)
v) Em latim, no original. Que a salvação do povo seja a lei suprema. (N.T.)
44) As pessoas pouco ao corrente destas matérias imaginarão talvez que exagero, ao tranformar em sistema político os crimes cometidos de longe em longe por alguns monstros coroados, em nome da razão de Estado. Uma opinião semelhante seria tão aborrecida quanto é errada; e devo protestar contra ela, no interesse da segurança pública tanto como no da verdade. A prática do que eu chamo razão de Estado é de todos os dias nas coisas da política e do governo: passou nos assuntos da Igreja, de corporação, do ofício; invadiu todas as camadas da sociedade; encontra-se nos tribunais tanto quanto nas sociedades industriais, e mesmo até na habitação doméstica.
Quando Lutero, por exemplo, para conservar para a Reforma a protecção do land¬grave* Philippe de Hesse, o autorizava por consulta assinada de sua mão, a possuir duas mulheres ao mesmo tempo, violando assim, por motivo religioso, a moral religiosa, seguia a razão de Estado. – Quando um médico, para salvar a honra de uma mulher adúltera e conservar a paz do casal, lhe provoca um aborto, tornando-se, pelo horror do escândalo, cúmplice de um infanticídio, obedece à razão de Estado. – Quando Luis XIV retinha arbitrariamente na prisão um desconhecido de máscara de ferro, seguia a razão de Estado. – Os tribunais dos presbotes, os tribunais de excep¬ção, são aplicações da razão de Estado. – Quando Napoleão I, depois de quinze anos de reinado, repudiava Josefina, sacrificava a moral à razão de Estado. E o oficial que consentia em anular o casamento religioso por formalidade judicial, sacrificava por seu lado a religião à razão de Estado. Quando os Jesuítas faziam assassinar Guilherme de Orange, Henrique III e Henrique IV, agiam igualmente por razão de Estado. Toda a política romana, e a governação dos Papas, e a disciplina dos mosteiros, não são senão uma série de actos elaborados em virtude da razão de Estado. O sis¬tema das cartas lacradas, abolido pela Revolução, era uma espécie de organização da razão de Estado. Os massacres de Setembro de 1792, as fornadas do tribunal revolucionário, as deportações sem julgamento, os fusilamentos do Luxemburgo e das Tulherias, todos esses feitos atrozes, produzidos tanto por uma municipalidade, tanto por um Directório, tanto por simples cidadãos, são factos imputáveis à razão de Estado. Quando os Girondinos pediam a perseguição dos autores dos massacres de Setembro, reagiam contra a razão de Estado. E quando Robespierre e consortes com¬batiam sobre esse ponto a Gironda, apoiavam a razão de Estado. A verdadeira revo¬lução seria aquela que elevando as consciências para além de toda a consideração humana, aboliria na política e em todas as relações da sociedade essa pavorosa re¬serva da razão de Estado, que, sob o pretexto da ordem, da honra, da salvação pública, da moral, tão depressa se permite, tanto inocenta os crimes mais evidentes e os melhores qualificados.
* Em inglês, no original. Título de alguns príncipes da Alemanha. (N.T.)
x)Em latim, no original. Sem a qual não é possível. (N.T.)
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