sexta-feira, setembro 24, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

«Em 1860, o czar Alexandre II da Rússia, depois de ter dado a liberdade aos camponeses dos seus Estados, em número de mais de vinte e cinco milhões de almas, e os ter chamado a usufruir dos direitos civis e políticos tais como o comporta o governo do seu império, deu a todos, como proprietários, a terra da qual antes eles não eram senão os servos, comprometendo¬se ele mesmo a indemnizar como pudesse os nobres desapossados. – A confederação americana fará menos, pelos seus Negros emancipados, que o que fez o czar Alexandre, um autocrata pelos seus camponeses? Não é prudente e justo que ela lhes confira também a terra e a propriedade, a fim de que eles não caiam numa servidão pior que aquela de onde saíram?
«A Confederação americana é chamada pelo encadeamento das ideias que a regem e pela fatalidade da sua situação a fazer ainda mais: deve, sob pena de recriminação por parte dos Estados do Sul, atacar nas suas origens o proletariado branco, tornando possuidores os assalariados e organizando, a par das garantias políticas, um sistema de garantias económicas. É ao Norte que compete tomar a iniciativa desta reforma, e arrastar o Sul de preferência pela força do exemplo que pela das armas.
«Fora disso, o ataque do Norte contra o Sul, hipócrita e ímpio, não pode levar senão à ruína de todos os Estados e à destruição da república.»
Pelo menos o Sr. Lincoln, obrigado a contar com o espírito aristocrático e as aversões morais da raça anglo¬saxónica, é até certo ponto desculpável, e a sinceridade das suas intenções deve fazer perdoar a sua estranha filantropia. Mas Franceses, homens formados na escola de Vol¬taire, de Rousseau e da Revolução, em quem o sentimento igualitário deve ser inato, como não sentiram eles que a intimação do Norte arrastaria todas essas consequências? Como se podem contentar com a aparente emancipação do Sr. Lincoln? Como têm eles a coragem de aplaudir a recente chamada à revolta dos escravos, apelo que não é evidente da parte do Norte em situação deseperada senão como meio de destruição, que reprovam igualmente o direito da guerra e o direito das pessoas?... Onde está a desculpa desses pretensos liberais? Não mostram bem que o senti-mento que os anima não é o amor pela humanidade, mas um frio cálculo de fariseu economista, que se diz a si próprio depois de ter comparado os seus custos de fabrico: Claro é mais vantajoso ao capitalismo, ao chefe da indústria, à propriedade e ao Estado, cujos interesses são aqui solidários, empregar trabalhadores livres, que mediante salário se têm de encarregar deles próprios, que trabalhadores escravos, sem preocupação com a sua existência, dando mais trabalho que os assalariados e dando proporcionalmente menos lucros.
Estes factos, estas analogias e estas considerações postas, eis as questões que dirijo ao Sr. Fr. Morin.
O princípio federativo aparece aqui intimamente ligado aos da igualdade social das raças e do equilíbrio das fortunas. Problema político, problema económico e problema das raças não são aqui senão um só e mesmo problema, que se trata de resolver pela mesma teoria e a mesma jurispru¬dência.
Notai, no que toca os trabalhadores negros, que a fisiologia e a etnografia os reconhecem como sendo da mesma espécie que os brancos; – que a religião os declara, assim como os brancos, filhos de Deus e da Igreja, resgatados pelo sangue do mesmo Cristo, e consequentemente seus irmãos espirituais; – que a psicologia não encontra nenhuma diferença de constituição entre a consciência do negro e a do branco, tanto como entre o entendimento deste e o entendimento daquele; – finalmente, isto está pro¬vado por uma experiência de todos os dias, que com a educação, e, se neces¬sário, o cruzamento, a raça negra pode dar produtos tão notáveis pelo talento, a moralidade e a habilidade como a branca, e que, mais de uma vez já, ela lhe foi de uma incalculável ajuda para a retemperar e rejuvenescer.
Logo, pergunto ao Sr. Fr. Morin:
Se os Americanos, depois de terem arrancado de viva força os negros ao seu país de África para os fazer escravos sobre a terra da América, têm o direito de os expulsar hoje, que já os não querem;
Se essa deportação, que não é senão renovar en sentido inverso o facto odioso do primeiro rapto, não constitui, para os pretensos abolicionistas, um crime igual ao dos negreiros;
Se, devido a um século de escravatura, os negros não adquiriram direito de uso e habitação sobre o solo americano;
Se seria suficiente aos proprietários franceses dizer aos proletários seus compatriotas, a todos aqueles que não possuem nem capital nem terras e que subsistem do aluguer dos seus braços: «O solo é nosso; vocês não possuem uma polegada de terra, e nós não temos mais necessidade dos vossos serviços: parti;» – para que os proletários renunciassem;
Se o Negro, tão livre como o Branco devido à natureza e devido à sua dignidade de homem, pode, ao retomar a possessão da sua pessoa momentaneamente perdida, ser excluído do direito de cidadania;
Se esse direito não lhe pertence pelo duplo facto da sua libertação recente e da sua residência anterior,
Se a condição de pária, à qual o projecto de Lincoln votaria o negro, não seria pior, para essa raça menor, que a servidão;
Se essa emancipação irrisória não é para o Norte uma vergonha, e não dá moralmente vantagem à reivindicação do Sul;
Se federados e confederados, combatendo unicamente pelo género de escravatura, não devem ser declarados, ex œquo, blasfemadores e renegados do princípio federativo, e banidos das nações;
Se a imprensa da Europa que, pelas suas excitações, pelo seu unitarismo e as suas tendências anti¬ igualitárias, se tornou cúmplice deles todos, não merece ela própria a desonra da opinião pública?
Generalizando o meu pensamento, pergunto ao Sr. Fr. Morin:
Se ele acredita que a desigualdade das faculdades entre os homens seja tal que ela possa legitimar uma desigualdade de direitos;
Se a desigualdade de fortunas, à qual a desigualdade de faculdades serve de pretexto e que cria na sociedade tão temíveis antagonismos, não é muito mais a obra do privilégio, da manha e do imprevisto, que a da natureza;
Se o primeiro dever dos Estados não é, consequentemente, reparar, pelas instituições mutualistas e por um vasto sistema de ensino, as injúrias do nascimento e os acidentes da vida social;
Se, em consequência, não lhe parece que o princípio de igualdade pe¬rante a lei tenha por corolário: 1º o princípio de igualdade das raças; 2º o princípio de igualdade das condições; 3º o da igualdade sempre mais próxima, mesmo se nunca realizada, das fortunas;
Se, segundo aquilo que se passa sob os nossos olhos, parece¬lhe que esses princípios, negação de todo o privilégio político, económico e social, de toda a preferência de pessoas e de raças, de todo o favor da sorte, de toda a proeminência de classe, possam ser seriamente aplicados e prosseguidos sob um outro governo que não o governo federativo;
Se, finalmente, tanto quanto a lógica, a história e os feitos contemporâ¬neos permitem julgá¬lo, não há decididamente incompatibilidade entre o Direito e o destino do género humano, e as práticas e aspirações do sistema unitário?
Imoralidade e escravidão, eis, quanto a mim, o que descubro no fundo dessa política de unidade, que é a de Mazzini e dos Jacobinos; que será amanhã a do presidente Lincoln, se uma melhor inspiração não vier arrancá¬lo, a ele e os seus compatriotas, às suas funestas e impiedosas disposições.

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