Fernando Correia Cardoso, no seu recente livro "Os Relógios da República" (Âncora) ressuscitou este excerto d' "As Farpas" de Eça de Queiroz de 1878 relativo à visita do rei D. Luís à Escola Politecnica em 1877 para inaugurar uma linha de telefone com o Observatório da Ajuda (vai na grafia da época):
"Por occasião da visita de el-rei á Escola Polytechnica funccionou o telephonio entre uma das salas da Escola e o Observatorio da Tapada.
Approximando-se do novo apparelho transmissor dos sons, dizem os jornaes que sua magestade ouvira- um solo de cornetim! Houve primeiro duvida sobre se o fio ligava a Escola Polytechnica com o Observatorio Astronomico ou se a ligava com a phylarmonica "União e Capricho". O solo era effectivamente executado pelo Observatorio.
Emquanto a astronomia tocava cornetim é natural que, em compensação, a arte musical se occupasse em determinar uma parallaxe.
A unica cousa que extranhamos é que o Observatorio não observasse entre as suas peças de musica alguma coisa mais interessante para transmittir a el-rei do que o proprio hymno do mesmo augusto senhor.
Que o Observatorio cultive a especialidade do cornetim, perfeitamente de accordo! mas que elle cultive igualmente a especialidade do hymno parece-nos um abuso que o principe não levará a bem.
Reflectiu por acaso o Observatorio no que é o hymno para um cerebro coroado? Cremos que o Observatorio não desceu ainda com as suas conjecturas ao fundo d'esse abysmo. É horroroso.
Para os cerebros coroados o hymno equivale a uma enfermidade monstruosa.
O observatorio faz certamente ideia do que é ter zumbidos, não é verdade? Pois ter hymno é peor. É ter constantemente, durante toda a vida, em casa, na rua, em viagem, nas cidades, nas villas, nas aldeias, sobre as proprias aguas do mar, sempre, por toda a parte como doença chronica, como affecção incuravel do nervo acustico, a audiçao do mesmo trecho de musica!--O que deve levar paulatinamente á loucura.
Que o Observatorio se compadeça do infeliz principe condemnado a tão incomportavel flagello! O Observatorio ha de ter conhecimento das contrariedades que amarguram a existencia; o Observatorio ha de ter faltas de dinheiro, ha de ter constipações, ha de ter dores de dentes, ha de ter calos. O principe tem tudo isto, e demais a mais tambem tem hymno. Poupemo-lo ao desgosto de o fazer acompanhar pelo seu triste mal ás regiões da sciencia! Inflijamos-lhe o solo, visto que não ha outro remedio, mas perdoemos-lhe por esta vez o hynmo! Sejamos terriveis, mas sejamos justos! A providencia collocou-nos na mão o cornetim. O monarcha presta-nos submissamente o seu real ouvido. Não abusemos d'esse instrumento poderoso e d'essa orelha innocente! Compenetremo-nos da tremenda responsabilidade que pesa sobre nossas cabeças! Somos cornetistas, mas somos tambem astronomos ... Toquemos o "Pirolito!" E a posteridade nos abençoará."
Eça de Queirós
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