segunda-feira, novembro 01, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

A Dialéctica Igualdade – Liberdade

Na divisa deste acontecimento fundador que foi aos seus olhos “a gloriosa Revolução Francesa”, Proudhon sempre colocou no mesmo plano a igualdade e a liberdade. Desconfia em compensação da fraternidade, substituindo-a por aquilo que hoje em dia chamamos solidariedade; mas essa temática não é o objecto de estudo deste trabalho.
Tomando os dois primeiros termos, um axioma do liberalismo político - nomeadamente em Tocqueville - coloca entre os dois uma contradição teórica insuperável. Egoística-
mente agarrado à liberdade da qual se diz “propenso a adorar”, o autor da “Democracia na América” reconhece na tendência em direcção à igualdade uma característica fatal das sociedades pós-revolucionárias. Mas ele não a ama, nem tem medo. Para ele a igualdade não pode ser outra coisa que nivelamento, esmagamento das diferenças que são a garantia de todas as liberdades. Perigo que largamente está presente naquilo que observa à sua volta.
É também que, falando dos homens de 89 e dos seus sucessores, o aristocrático lúcido escreve: “Eles queriam ter sido livres para se fazerem iguais, e à medida que a igualdade se estabelecia mais com a ajuda da liberdade, tornava a liberdade mais difícil” (69). Repare-se que não fala de justiça nesta consideração. A dificuldade reside na localização da causa dum tal desvio.
Subjacente ao texto citado - e a tantos outros com a mesma ressonância - há a convicção que a igualdade, sendo contrária à natureza humana, a sua instauração e a sua manutenção não são susceptíveis de se realizar a não ser pela violência. Somente um poder implacável poderia reduzir o funcionamento benéfico das diversidades, de tal modo que nenhuma personalidade poderia emergir do conjunto, mas suprimindo do mesmo golpe estas personalidades. Claro que devemos esforçar-nos por reduzir as desigualdades excessivas. Em conclusão, não é possível suprimi-las sem terríveis perdas.
O ponto de vista de Proudhon (que conhece mal Tocqueville) é totalmente oposto. Também ele afirma, uma paixão pela liberdade e abomina “a uniformidade beata e estúpida” (70). É inútil insistir longamente neste ponto. Sabemos que toda a sua obra em germe se encontra aqui nesta memória, “O que é a Propriedade?” sendo a ideia directriz que a liberdade proclamada ficará um engodo enquanto que a igualdade não puder ser instaurada por uma mudança radical do direito de propriedade. O poder político, não terá nunca outra função que manter as desigualdades ditas “naturais” em proveito dos interesses em jogo. Encontramo-nos no âmago da questão.
Numa tal concepção, a igualdade e a liberdade não somente deixam de se opor como são rigorosamente correlativas. Nada pode ser dito livre se, oprimido ou opressor, não é igual aos outros. Inversamente, a igualdade imposta conduzindo a servitude, os cidadãos igualmente livres não saberiam ser livremente iguais.A partir dum primeiro escrito de aparência pouco subversiva - “A Celebração de Domingo” - Proudhon colocava este axioma: “A igualdade dos bens é uma condição da liberdade”(71). No texto seguinte, o explosivo “Primeira Memória”, retoma a fórmula refazendo-a:
“Sem liberdade não há igualdade”(72).
Este laço íntimo, indissociável, entre liberdade e igualdade constitui a essência da pessoa. Esta é una por definição e dispõe dum livre arbítrio. Por esta razão fundamental, a dignidade humana exige ser igualmente admitida e respeitada por todos. Quem nega reconhecer o homem no outro nega-o nele próprio.
Neste ponto e desde o início compreende-se o porquê da liberdade e da igualdade não se excluirem, como para além disso, se apoiarem mutuamente. Seres livres são necessariamente iguais, pois não saberíamos conceber degraus na liberdade. Correlativamente reconhecem-se iguais não por causa da identidade dos seus caracteres mas por uma livre afirmação. Esta exigência filosófica aplica-se a todos os domínios e em primeiro lugar à economia, condição da liberdade. Quem nada possui é escravo da sua miséria. Quem se arroga para além da parte dos bens indivisos da humanidade que lhe dizem respeito, não é livre, o privilégio ao qual se encontra amarrado privando-o da sua dignidade de homem.
A demonstração destas premissas exige uma definição da liberdade e uma preparação sobre a significação de igualdade.
Na visão proudhoniana o homem é um ser social que, no sentido forte, não existiria sem os outros. Nem a sociedade nem os indivíduos são primeiros: eles são co-extensivos. A prova está em que os bens necessários à sobrevivência assim como à manifestação de cada um, inacessíveis aos esforços isolados, resultam duma força colectiva de que, antes de Marx, Proudhon estabeleceu a existência. Basta lembrar a parábola do obelisco, levantado num dia por duzentos granadeiros, enquanto que o trabalho dum único homem em duzentos dias foi incapaz de, conseguir o feito.(Primeira Memória, p. 215)
Deste modo a liberdade e a igualdade, fundadas na qualidade de valores morais, impõem-se igualmente como uma necessidade da economia. O poder de dominar as coisas é o único capaz de abolir o do homem sobre o homem. Entretanto não saberia ser exercido a não ser vulgarmente, o que tem por efeito que nenhum de nós pode aceder à dignidade de homens fora da sociedade. O trabalho - que nos torna mestres da natureza - sendo a condição da liberdade, esta por sua vez deve ser reconhecida como idêntica em nós. Dito de outro modo a nossa própria libertação exige a cooperação de cada um e reciproca-
mente. No limite, ela é o facto da humanidade inteira.
Segue-se que, o que nos é devido também o devemos. “A liberdade é o balançar dos direitos e dos deveres: tornar um homem livre é nivelá-lo com os outros, quer dizer, colocá-lo ao nível de todos”,(73) é afirmado na “Primeira Memória”. “Balançar” sempre teve em Proudhon o sentido de “equilibrar” não pela equivalência mas na complementaridade. O grande tratado “Da Justiça” desenvolverá este conceito da reciprocidade dos valores cerca de vinte anos mais tarde, esforçando-se por tirar todas as consequências.
A capacidade unificadora da liberdade não deve, portanto, dissimular que ela é também um formidável poder de contradição, logo de conflito. Ela “não reconhece nem lei, nem razão, nem autoridade, nem fim, nem limite, nem princípio, nem causa à excepção dela. (...). Ela é o contraditor eterno, que se mete através de todo o pensamento e de toda a força que contribuiria a dominá-lo; o indomável insurgido, que só tem fé nele próprio, respeito e estima por ele próprio, que não suporta mesmo a ideia de Deus do mesmo modo que reconhece em Deus a sua própria antítese, sempre ele”.(74). Concepção dialéctica, segundo a qual a contradição está inscrita no real. “A antinomia e a força de colectividade, precisa Proudhon, são os dois princípios sobre os quais repousa toda a teoria da liberdade” (75). Esta chave dá acesso ao centro do seu pensamento.
Assim, apesar da acentuação tenha sido posta primeiramente - com um atrevimento provocador - sobre a igualdade, a teoria da liberdade está em primeiro lugar: “A ordem social não é um organismo, um sistema, é o pacto da liberdade, a sua equação de pessoa a pessoa, o que comporta (...) a maior variedade possível de combinações, a maior independência dos indivíduos e dos grupos” (76). O fosso que separa Proudhon do liberalismo não é tanto que ele dê menos confiança à liberdade mas esta não é definida por ele como valor privado, opondo o indivíduo à sociedade. O estado social humano é liberdade, ou nada é. Daí a afirmação da anarquia, noção englobando a autonomia e a auto-organização.
Nesta perspectiva, a igualdade aparece ainda melhor como o corolário indispensável da liberdade, o valor mais singular, o mais pessoal e por isso mesmo o mais universal. Não somente a igualdade intrínseca das pessoas não exclui em nada as suas disparidades, mas estas são constitutivas da própria pessoa. O homem é, por definição, o ser que mais se distingue, que não existe a não ser na medida em que é único. Esta infinita diversidade dos seres livres fá-los iguais entre eles, não a despeito das suas diferenças mas por causa delas.
Isto confirma que a igualdade não é em nada identidade. Ela é equivalência, igualdade de valor. Afirmar: todo o homem vale tanto como um outro, não é de modo algum dizer que eles são o mesmo. No fundo insatisfeito com a palavra “igualdade” - bandeira agitada contra aqueles que a recusavam - Proudhon retoma, para melhor a aprofundar, esta noção de balanço da qual dissemos que ela exprime a relação necessária entre dois pólos, por sua vez de oposição e de complementa-
ridade. “Igualdade, palavra inexacta, escreve para ele próprio; é o equilíbrio”(77). Ainda seria necessário acrescentar que não se trata de modo algum de um equilíbrio estático, inerte, mas sempre instável e por consequência sempre em movimento.
Esta igualdade de direito - que exige todavia uma progressiva egualização das condições materiais - deve então reger o conjunto das relações no seio duma sociedade de homens livres e, em primeiro lugar, a troca dos produtos do trabalho. Aí ainda não há nunca similaridade mas “balanço”,naquela infinita variedade de desejos e dos bens postos em equilíbrio, ofertas e pedidos em aparência heterogénios.
Porque são livres, os indivíduos fazem comércio entre eles como mais lhes agradar e do que lhes agradar, com a única condição de ter a operação por equitativa. O que exige que nenhum constrangimento desigual venha deturpá-la. Tal é a definição de troca dada desde a primeira memória: “Quem diz comércio diz troca de valores iguais; porque se os valores não são iguais e o contratante lesado se apercebe disso não consentirá a troca e não se fará comércio. O comércio só existe entre homens livres: por toda a parte pode haver transacção conseguida pela violência ou pela fraude, mas não há comércio.(...) Assim, em qualquer troca, há a obrigação moral de nenhum dos contratantes ganhar algo em detrimento do outro; quer dizer que o comércio, para ser legítimo e verdadeiro, deve estar isento de toda a desigualdade; é a primeira condição do comércio. A segunda condição é que seja voluntário, quer dizer, que as partes transijam com liberdade...”(78)
Os dois grossos volumes das “Contradições Éconómicas” desenvolverão e argumentarão a teoria do mutualismo, inteiramente fundada sobre esta análise inicial.
Seja qual for o ângulo sob o qual se encare as coisas, e pela ponta que as tomemos, liberdade e igualdade aparecem sempre em Proudhon como um casal, em que os termos não podem ser pensados a não ser um em relação ao outro. Bem longe de se excluírem - assim acreditava verificar o pessimismo dos liberais - são as duas faces duma mesma realidade. Mais precisamente, já o dissemos, é a realidade que é concebida dialecticamente, como complementaridade dos contrários.
Dialéctica a dois tempos que exclui no seu princípio qualquer síntese. Em oposição com o hegelianismo, e após ter longamente hesitado, o autor das Contradições teve o mérito de descobrir que toda a resolução final num terceiro termo acaba por suprimir a contradição, assim como toda a liberdade e toda a igualdade verdadeiras.A síntese conduz infalivelmente “ao absolutismo governamental, à omnipotência do Estado, à subalternização do indivíduo”. (79) Dito de outro modo à ditadura totalitária.
Nesta concepção liberdade e igualdade contradizem-se, num certo sentido, e não é para admirar que a experiência a faça parecer. Mas esta contradição é necessária. Se suprimimos um dos dois termos, o outro desaparece. Até ao ponto que Proudhon não hesita em colocar esta equação: “A liberdade é igual-dade”(80). Um pouco mais longe, vai até à invocação lírica do Deus que não existe aos seus olhos como se fosse dual: “Ó Deus de liberdade! Deus de igualdade!”(81) Surpreendente visão, já encontrada, que funda aquilo que alguns não recearam chamar a sua “teologia”.
Assim a exigência de liberdade que conduz à não submissão a quem quer que seja, e a da igualdade que nos une a todos, estão entre elas em tensão perpétua. Esta é a fonte própria da liberdade, o fundamento da igualdade. O “contrário” (no sentido lógico) da liberdade, é a servidão; e o contrário da igualdade a exploração do homem pelo homem. Uma e outra são, ao mesmo título, negação da unidade à qual cada um aspira nas suas relações com os outros: por sua vez ligado a estes pois que eles nos são homólogos e opomo-nos a eles porque são diferentes de nós.
“O homem mais livre, diz Proudhon, é aquele que tem mais relações com os seus semelhantes” .(82)
Proposição que poderia ser inscrita em epígrafo a toda a sua obra. Se os homens não fossem iguais ou renunciassem a combater para fazer prevalecer esta igualdade, seguir-se-ia que alguns nasceriam escravos e outros mestres para sempre. Quer dizer que não haveria género humano.
A expressão desta dualidade “liberdade-igualdade”, é a justiça, “produto misto do instinto social e da reflexão” para nos referirmos sempre de preferência às intuições seminais da “Primeira Memória” (83). A ideia de justiça é por sua vez aspiração e realidade, afirmação da unicidade da espécie humana e da irredutível individualidade de cada um dos seus componentes. Segundo uma das definições, ou sobretudo uma das aproximações, que Proudhon tentará no seu grande tratado sobre o sujeito, é “a faculdade de sentir e de afirmar a nossa dignidade, por conseguinte da querer e da defender, tão bem na pessoa de outrem como na nossa”. (84) Sobrepondo, ultrapassando a realidade do direito, a Justiça transcende a desigualdade de natureza pela afirmação duma especificidade espiritual que se impõe à natureza. Por aí ela é inesgotável irrupção de liberdade no mundo. Esta emergência contínua de homem, medida de tudo, não receia a contradição: ela é contradição. Procura dum equilíbrio, claro, mas sempre inacabado; e também ultra-passagem de todo o equilíbrio. Tensão criadora entre dois pôlos que se repelem do mesmo modo que se atraiem.
Como sabemos a realização política deste duplo movimento de convergência e de particularismo entre as pessoas e os grupos deve fazer-se para Proudhon - No ùltimo estádio do seu pensamento que o resume por inteiro - pelo federalismo. Podemos defini-lo brevemente como um edifício complexo de sociedades sobrepostas mas não hierarquizadas, no seio do qual a igualdade dos membros garante a liberdade do conjunto. Projecto onde se conjuga a dialéctica das ideias e o diálogo das pessoas, a diversidade infinita da espécie e a sua fundamental unidade.
Tudo o que esta obra afirma, por consequência, é que a igualdade, não mais que a liberdade, não são dadas, mas, sem cessar, a conquistar. A vida humana é um combate que não se pode dissociar do risco e onde ninguém - mesmo que seja um Deus -age em nosso lugar. A liberdade remete a cada um de nós um destino único. Sendo igual entre todos, a responsabilidade que daí resulta une-nos uns aos outros, sem os quais seríamos aliás incapazes de o assumir. É necessário sempre agarrar as duas extremidades da corrente.
Pesado esforço por um êxito duvidoso e feridas asseguradas. Pelo menos, vencedores ou vencidos encontrarão a única honra que vale a pena: a de se ser respeitado no olhar do outro.

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