SER SOCIALISTA, HOJE
Questão deveras rica, porque possibilitadora de uma análise que está muito próxima da investigação que empreendi há quase duas décadas.
Na questão a ser tratada temos presente duas ordens de problemas: 1º Ser socialista. 2º Ser socialista, hoje. Mas tal como no poema parmenidiano os dois caminhos da investigação reduzem-se a um só, o caminho do que é. Logo o que está verdadeiramente em causa é o ser, ser socialista. Agitar a temporalidade presente a propósito do socialismo não é mais que uma redundância, melhor dizendo, uma maneira de falsificar uma problemática que não tem dois séculos de existência efectiva. O conjunto de temas que inelutavelmente pertencem ao espaço vital do socialismo é o mesmo quer nos situemos em 1865 ou em 1997. “Mas”, como no Poema, “tu julga com a razão a prova muito contestada de que falei”.
O ser socialista e o que isso significa tem uma dimensão histórica que não pode ser escamoteada apesar desta afirmação, deixar os cabelos em pé dos intelectuais “engagé”. É sobre essa dimensão histórica que é necessário tecer algumas considerações. “De um só caminho nos resta falar; do que é;”
Há na história da humanidade, anos que não têm sorte. Vindos demasiadamente cedo ou demasiadamente tarde para coincidir com grandes acontecimentos, guerras ou revoluções, nascidos antes ou após o seu termo, permanecem ignorados do futuro, mesmo se eles fizeram todos os possíveis em preparar novos caminhos.
Enquanto que 1789 é universalmente conhecido por ter marcado o princípio da Revolução Francesa e a tomada da Bastilha, quem se lembra ainda de 1788 ou de 1787? Enquanto que a independência das colónias americanas data de 1776, quem se lembra de 1775 ou 1774? E, para voltar à questão fundamental deste escrito, quem sabe que em 1846, dois anos antes da revolução de 1848, teve lugar um dos factos mais importantes para o futuro da humanidade, apesar da sua modéstia e do seu aparente mistério?
1846, é o ano da ruptura entre dois homens, cada um representando uma concepção do socialismo. No mês de Maio desse ano, Karl Marx, inspirador e líder do socialismo alemão, envia uma carta a Pierre-Joseph Proudhon, inspirador do socialismo francês. Proudhon responder-lhe-à e será o fim da unidade do socialismo, que bem vistas as coisas nunca existiu. Duas correntes vão desenhar-se, uma na sequência de Marx, dirigindo-se na direcção do totalitarismo, o estadismo e a perda des liberdades, a outra, ao lado de Proudhon, tentando realizar a associação dos homens livres e dos povos independentes. Duas correntes que, não pararão de degladiar-se, e que ainda hoje, dividem maneiras de pensar e de sentir.
Os dois pensadores socialistas conheciam-se bem e havia uma grande admiração da parte de Marx em relação a Proudhon. Em 1844, Marx reside em Paris e não pára de se encontrar com Proudhon. Na ebulição de ideias que caracteriza esta época, passam noites inteiras a discutir os problemas sociais, filosóficos e económicos da altura. Marx inicia Proudhon na filosofia alemã cujo papel será determinante na criação do marxismo: Fala-lhe de Feuerbach, defensor do ateísmo e crítico de todas as religiões reveladas. Fala-lhe de Hegel, cujo pensamento contém o germe do Estado totalitário. Em compensação, Proudhon que tinha publicado em 1840 um panfleto sobre a propriedade, comenta-lhe uma das fórmulas espectaculares contidas neste escrito: “A propriedade é o roubo!” Marx, não duvidamos , está radiante. E proclama, a quem o quiser ouvir ou ler, que Proudhon é o pensador mais ousado do socialismo francês.
Em Dezembro de 1845, Marx é expulso de Paris pelo governo de Luís Filipe o que impossibilita a continuação dos contactos directos com Proudhon. Regressado à Alemanha, escreve a este último para lhe pedir ser o correspondente em França de uma Sociedade de Educação Operária, que acaba de fundar no seu país. O que entende Marx por “educação operária”? A difusão das suas ideias à qual está decidido a consagrar todos os meios de sugestão, de propaganda de que dispõe: não se trata de ensinar os operários a pensar por eles próprios. É necessário endoutriná-los fazendo-os auxiliares obedientes e passivos duma doutrina imposta. Nada disto convém a Proudhon, respeitoso da liberdade dos outros. Nessa sequência envia-lhe uma carta que consagra as suas divergências de opinião e que provoca a ruptura: “Faço profissão com o público dum anti dogmatismo económico quase absoluto...Não olhemos nunca uma questão como esgotada, e, quando tivermos usado até ao nosso último argumento, recomecemos, se for preciso, com eloquência e ironia.Com esta condição, entrarei, com prazer, na sua associação; caso contrário, não!”
Esta carta, sob o seu aspecto, talvez, um pouco professoral, constitui a resposta da liberdade de espírito à sua militarização. Marca o conflito que estala entre duas concepções políticas, ao mesmo tempo que o desacordo entre dois homens.
Sem dúvida é esta a razão profunda do desentendimento entre eles, a razão pela qual Karl Marx, após ter definido Proudhon como um “pensador audacioso”, o tratará de “pequeno burguês”.
Na realidade, num caso como no outro, Proudhon é incompreensível para Marx: representa o espírito de liberdade, do qual procede o federalismo, oposto ao espírito de sistema de onde saíram a ditadura comunista e o totalitarismo estalinista.
Ser socialista ontem como hoje, só pode ser entendido em rigor e com objectividade histórica, por uma das duas vias que foram estabelecidas a partir da I Internacional dos trabalhadores em 1864: a via autoritária e a via anti-autoritária, ou seja, o socialismo marxista e o socialismo proudhoniano. Todos os outros “socialismos”, desde Bernstein até hoje, situam-se na órbita do chamado revisionismo, uma derivação do marxismo, considerada nefasta por este último. Trata-se fundamentalmente da integração do movimento social contestatário na lógica de uma economia de mercado capitalista apoiada por uma forte burocracia estatal segundo moldes variados desde o “socialismo real” até ao socialismo lusitano que prega, na teoria, preocupações de ordem social.
A história das relações entre o socialismo autoritário e o socialismo anti autoritário é algo que não pode escamoteado e muito menos esquecido apesar de poder causar muitas dores de cabeça até ao socialista mais “puro”.
Para terminar mas não para concluir, poderia dizer que o homem escolhe-se ao escolher o socialismo, ou então para citar Proudhon: “Se lhe tirarem o socialismo, a vossa república tornar-se-à o que foram todas as repúblicas: burguesa, feudal, individualista, com tendência para o despotismo e para a reconstituição das castas: numa palavra - insocial.”
Questão deveras rica, porque possibilitadora de uma análise que está muito próxima da investigação que empreendi há quase duas décadas.
Na questão a ser tratada temos presente duas ordens de problemas: 1º Ser socialista. 2º Ser socialista, hoje. Mas tal como no poema parmenidiano os dois caminhos da investigação reduzem-se a um só, o caminho do que é. Logo o que está verdadeiramente em causa é o ser, ser socialista. Agitar a temporalidade presente a propósito do socialismo não é mais que uma redundância, melhor dizendo, uma maneira de falsificar uma problemática que não tem dois séculos de existência efectiva. O conjunto de temas que inelutavelmente pertencem ao espaço vital do socialismo é o mesmo quer nos situemos em 1865 ou em 1997. “Mas”, como no Poema, “tu julga com a razão a prova muito contestada de que falei”.
O ser socialista e o que isso significa tem uma dimensão histórica que não pode ser escamoteada apesar desta afirmação, deixar os cabelos em pé dos intelectuais “engagé”. É sobre essa dimensão histórica que é necessário tecer algumas considerações. “De um só caminho nos resta falar; do que é;”
Há na história da humanidade, anos que não têm sorte. Vindos demasiadamente cedo ou demasiadamente tarde para coincidir com grandes acontecimentos, guerras ou revoluções, nascidos antes ou após o seu termo, permanecem ignorados do futuro, mesmo se eles fizeram todos os possíveis em preparar novos caminhos.
Enquanto que 1789 é universalmente conhecido por ter marcado o princípio da Revolução Francesa e a tomada da Bastilha, quem se lembra ainda de 1788 ou de 1787? Enquanto que a independência das colónias americanas data de 1776, quem se lembra de 1775 ou 1774? E, para voltar à questão fundamental deste escrito, quem sabe que em 1846, dois anos antes da revolução de 1848, teve lugar um dos factos mais importantes para o futuro da humanidade, apesar da sua modéstia e do seu aparente mistério?
1846, é o ano da ruptura entre dois homens, cada um representando uma concepção do socialismo. No mês de Maio desse ano, Karl Marx, inspirador e líder do socialismo alemão, envia uma carta a Pierre-Joseph Proudhon, inspirador do socialismo francês. Proudhon responder-lhe-à e será o fim da unidade do socialismo, que bem vistas as coisas nunca existiu. Duas correntes vão desenhar-se, uma na sequência de Marx, dirigindo-se na direcção do totalitarismo, o estadismo e a perda des liberdades, a outra, ao lado de Proudhon, tentando realizar a associação dos homens livres e dos povos independentes. Duas correntes que, não pararão de degladiar-se, e que ainda hoje, dividem maneiras de pensar e de sentir.
Os dois pensadores socialistas conheciam-se bem e havia uma grande admiração da parte de Marx em relação a Proudhon. Em 1844, Marx reside em Paris e não pára de se encontrar com Proudhon. Na ebulição de ideias que caracteriza esta época, passam noites inteiras a discutir os problemas sociais, filosóficos e económicos da altura. Marx inicia Proudhon na filosofia alemã cujo papel será determinante na criação do marxismo: Fala-lhe de Feuerbach, defensor do ateísmo e crítico de todas as religiões reveladas. Fala-lhe de Hegel, cujo pensamento contém o germe do Estado totalitário. Em compensação, Proudhon que tinha publicado em 1840 um panfleto sobre a propriedade, comenta-lhe uma das fórmulas espectaculares contidas neste escrito: “A propriedade é o roubo!” Marx, não duvidamos , está radiante. E proclama, a quem o quiser ouvir ou ler, que Proudhon é o pensador mais ousado do socialismo francês.
Em Dezembro de 1845, Marx é expulso de Paris pelo governo de Luís Filipe o que impossibilita a continuação dos contactos directos com Proudhon. Regressado à Alemanha, escreve a este último para lhe pedir ser o correspondente em França de uma Sociedade de Educação Operária, que acaba de fundar no seu país. O que entende Marx por “educação operária”? A difusão das suas ideias à qual está decidido a consagrar todos os meios de sugestão, de propaganda de que dispõe: não se trata de ensinar os operários a pensar por eles próprios. É necessário endoutriná-los fazendo-os auxiliares obedientes e passivos duma doutrina imposta. Nada disto convém a Proudhon, respeitoso da liberdade dos outros. Nessa sequência envia-lhe uma carta que consagra as suas divergências de opinião e que provoca a ruptura: “Faço profissão com o público dum anti dogmatismo económico quase absoluto...Não olhemos nunca uma questão como esgotada, e, quando tivermos usado até ao nosso último argumento, recomecemos, se for preciso, com eloquência e ironia.Com esta condição, entrarei, com prazer, na sua associação; caso contrário, não!”
Esta carta, sob o seu aspecto, talvez, um pouco professoral, constitui a resposta da liberdade de espírito à sua militarização. Marca o conflito que estala entre duas concepções políticas, ao mesmo tempo que o desacordo entre dois homens.
Sem dúvida é esta a razão profunda do desentendimento entre eles, a razão pela qual Karl Marx, após ter definido Proudhon como um “pensador audacioso”, o tratará de “pequeno burguês”.
Na realidade, num caso como no outro, Proudhon é incompreensível para Marx: representa o espírito de liberdade, do qual procede o federalismo, oposto ao espírito de sistema de onde saíram a ditadura comunista e o totalitarismo estalinista.
Ser socialista ontem como hoje, só pode ser entendido em rigor e com objectividade histórica, por uma das duas vias que foram estabelecidas a partir da I Internacional dos trabalhadores em 1864: a via autoritária e a via anti-autoritária, ou seja, o socialismo marxista e o socialismo proudhoniano. Todos os outros “socialismos”, desde Bernstein até hoje, situam-se na órbita do chamado revisionismo, uma derivação do marxismo, considerada nefasta por este último. Trata-se fundamentalmente da integração do movimento social contestatário na lógica de uma economia de mercado capitalista apoiada por uma forte burocracia estatal segundo moldes variados desde o “socialismo real” até ao socialismo lusitano que prega, na teoria, preocupações de ordem social.
A história das relações entre o socialismo autoritário e o socialismo anti autoritário é algo que não pode escamoteado e muito menos esquecido apesar de poder causar muitas dores de cabeça até ao socialista mais “puro”.
Para terminar mas não para concluir, poderia dizer que o homem escolhe-se ao escolher o socialismo, ou então para citar Proudhon: “Se lhe tirarem o socialismo, a vossa república tornar-se-à o que foram todas as repúblicas: burguesa, feudal, individualista, com tendência para o despotismo e para a reconstituição das castas: numa palavra - insocial.”
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